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Europa vive outra onda de refugiados. Desta vez, a recepção é diferente

Invasão da Rússia na Ucrânia gerou o êxodo que mais cresce desde o fim da Segunda Guerra Mundial, mas desta vez países europeus estão facilitando a entrada das pessoas e dizendo que elas são 'diferentes'
Pessoas fugindo da invasão da Rússia na Ucrânia aguardam transporte após chegarem na Eslováquia Foto: Lukasz Glowala / Reuters
Pessoas fugindo da invasão da Rússia na Ucrânia aguardam transporte após chegarem na Eslováquia Foto: Lukasz Glowala / Reuters

Enquanto a Polônia anunciou gastos de milhões de dólares na construção de uma cerca em sua fronteira com a Bielorrússia após imigrantes do Norte da África e do Oriente Médio tentarem entrar no país em 2021, Varsóvia abriu as portas para centenas de milhares de refugiados da Ucrânia, levantando a quarentena exigida para quem chega de fora da União Europeia e oferecendo vacinas contra a Covid.

As boas-vindas do governo polonês aos ucranianos que fogem da invasão russa ilustra como alguns governos, em especial do Leste europeu, estão atuando de maneira oposta à adotada em ondas anteriores de refugiados — particularmente de sírios em 2015. No êxodo atual, mais de 1,5 milhão de pessoas já fugiram desde a invasão russa , em 24 de fevereiro, até este domingo, segundo a ONU.

— Esta é a crise de refugiados que mais cresce na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial — disse no domingo Filippo Grandi, alto comissário da ONU para refugiados.

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Se há menos de três meses o primeiro-ministro ultranacionalista húngaro, Viktor Orbán , afirmou que “não vamos deixar ninguém entrar”, em resposta a uma decisão da Justiça da UE que determinou que as políticas de imigração húngaras estavam em contradição com as leis do bloco, agora ele diz que “estamos deixando todos entrarem”.

O país, que já recebeu mais de 169 mil pessoas — atrás apenas da Polônia, com mais de 885 mil —  abriu um corredor humanitário, autorizando que refugiados entrem no país sem processar antes o pedido de asilo.

Na Áustria, o atual chanceler, quando era ministro do Interior, disse que não aceitaria refugiados afegãos após o Talibã retomar o poder, em agosto do ano passado. Na atual crise, Karl Nehammer afirmou que "com certeza acolherá refugiados se necessário". Afinal, segundo ele, “é diferente”. “Estamos falando de ajuda de vizinhos”, explicou na TV.

Já o primeiro-ministro da Bulgária, Kiril Petkov, disse que a questão é que “esses não são os refugiados com os que estamos acostumados”.

— Essas pessoas são inteligentes, educadas. Essa não é a onda de refugiados a que estamos acostumados, de pessoas que não tínhamos certeza sobre suas identidades, pessoas com passado desconhecido, que poderiam até ser terroristas — disse Petkov. — Em outras palavras, não há um único país europeu agora que esteja com medo da atual onda de refugiados.

Analistas acreditam que essa receptividade pode ser fruto, pelo menos em parte, da tentativa de sublinhar a agressão russa, que toca especialmente os países do Leste que foram parte do antigo bloco soviético. No entanto, há outro fator intrínseco.

— É difícil não ver que os ucranianos são brancos, europeus e em maioria cristãos — disse ao New York Times Serena Parekh, professora da Northeastern University, em Boston, e autora de “No refuge: ethics and the global refugee crisis” (“Sem refúgio: ética e a crise global de refugiados”, em tradução livre). — De certa forma, a xenofobia que emergiu nos últimos dez anos, particularmente depois de 2015, não está em jogo nesta crise da maneira que tem sido para os refugiados vindos do Oriente Médio e da África.

Outros fatores também podem explicar a diferença na recepção, explica Oliviero Angeli, professor de ciências políticas na Universidade Técnica de Dresden, na Alemanha, e coordenador do centro de estudos Fórum Mercator para Migração e Democracia (Midem).

Um deles é sociológico: o fato desses países para onde os ucranianos estão indo não terem experiências com refugiados de fora do continente, que se concentram em geral nos países do Mediterrâneo e da Europa Ocidental. O outro seria cultural: essas nações são mais conservadoras, tendo assim uma abordagem menos liberal em relação à diversidade social.

Angeli explica que a Polônia já é o lar de mais de um milhão de ucranianos, ou seja, eles já estão integrados à sociedade polonesa, não despertando nenhum sentimento de "grande perigo". Há também uma questão de solidariedade, já que os poloneses veem a Rússia como um inimigo comum.

— De certa forma, é um ato de solidariedade que está unindo os governos e suas sociedades civis — afirma o especialista ao GLOBO. — Na Polônia, por motivos históricos , sempre houve uma espécie de medo ou ansiedade sobre a influência russa. Isso é comum para a maioria dos países do Centro e do Leste da Europa, mas na Polônia é provavelmente mais forte.

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No caso da Hungria, a história é diferente. Para alguns analistas, Orbán — que já chamou refugiados de “ameaça” e aprovou uma lei para expulsá-los sumariamente — pode estar tentando disparar mensagens distintas para diferentes camadas do eleitorado húngaro, às vésperas das eleições parlamentares de 4 de abril nas quais, segundo pesquisas, seu partido teria apenas uma leve vantagem na disputa com a oposição, que se unificou para derrotar o líder nacional-populista há 12 anos no poder.

Orbán, no entanto, não alterou completamente sua posição anti-imigração. O governo abriu suas fronteiras para ucranianos, mas há críticas de que não existe esforço para ajudá-los a chegar em solo húngaro.

Num olhar mais amplo sobre a União Europeia, o bloco aprovou por unanimidade na semana passada um plano de emergência que concede aos ucranianos uma via rápida de refúgio, permitindo que trabalhem por até três anos nos países do bloco. É a primeira vez que a medida foi acionada desde sua criação, em 2001.

Segundo uma autoridade da UE ouvida pelo Guardian , considerou-se usar o mecanismo durante a crise de 2015 e 2016 quando mais de um milhão de sírios e pessoas de outras nacionalidades fugiram da violência no Oriente Médio, mas a decisão foi contrária pela situação ser “diferente”. De acordo com a autoridade, a medida foi projetada para uma “situação de uma nacionalidade” e “não teria resolvido os problemas enfrentados naquela época”, quando aos sírios se misturavam afegãos, iraquianos e africanos.

Ainda agora, há muitos relatos de que pessoas de outras nacionalidades que tentam fugir da Ucrânia, em especial estudantes africanos , não vêm recebendo a mesma receptividade. Eles contam que são impedidos de embarcar em trens, postos no fim da fila de passagem das fronteiras e às vezes impedidos de cruzá-las. Nos últimos dias, a hashtag #Africansinukraine inundou as redes sociais. A União Africana disse estar “preocupada” pelo tratamento potencialmente racista.

Há ainda outra questão ainda sem resposta: até quando a Europa suportará um dos maiores êxodos deste século, que segundo cálculos da ONU pode chegar a 4 milhões de refugiados. Alguns temem que o prolongamento da guerra jogaria os ucranianos no mesmo limbo em que refugiados do Oriente Médio e da África estão há anos, alguns ainda em campos de refugiados.

— A Alemanha, que foi o principal destino dos refugiados em 2015, recebeu 850 mil pessoas em um ano. Agora, a Polônia recebeu mais de 500 mil em apenas uma semana — relembra Angeli. — Se os números continuarem tão altos pelas próximas semanas, eles vão ter problemas crescentes. Essa é provavelmente uma questão que poderemos retomar em uma, duas ou três semanas.