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Exploração do lítio, o ‘ouro branco’ de Evo Morales, vira uma incógnita na Bolívia

Sonhos industriais de ex-presidente ficam em suspenso por dificuldades técnicas e disputas políticas
Vista aérea de um complexo de extração de lítio, de propriedade do Estado, no Salar de Uyuni, na Bolívia Foto: PABLO COZZAGLIO / AFP 10-7-19
Vista aérea de um complexo de extração de lítio, de propriedade do Estado, no Salar de Uyuni, na Bolívia Foto: PABLO COZZAGLIO / AFP 10-7-19

RIO - Por muito tempo, a Bolívia apostou que seu desenvolvimento se associava a seus recursos naturais, incluindo a prata, o gás e o estanho. A crescente demanda global pelo lítio, usado para armazenar energia em baterias de celulares, laptops e carros elétricos, fez dele a esperança da vez.

Com a justificativa de impedir que a maioria do lucro fosse para companhias transnacionais, o ex-presidente boliviano Evo Morales propôs mudar o paradigma da exploração do mineral que chamava de “ouro branco”, cujas maiores reservas do mundo estão na Bolívia e na Argentina. Com a sua renúncia sob pressão de militares , no dia 10 de novembro, a exploração do lítio no país andino se torna uma incógnita.

No final dos anos 1980 e início dos 90, o governo da Bolívia considerou seguir o exemplo do Chile, que, receptivo a investimentos estrangeiros, já produzia lítio a partir de salmoura no Deserto do Atacama (atualmente, a mais significativa fonte do continente). Na Bolívia, houve protestos contra o modelo, atacado como uma atividade econômica extrativista colonial, e a empresa americana interessada foi para a Argentina.

— Morales sempre disse que queria fazer um programa diferente, que considerasse a soberania boliviana e tivesse a participação do povo — afirmou Janine Romero Valenzuela, pesquisadora da Universidade de Erfurt (Alemanha), que estudou o caso boliviano em seu doutorado.

Em 2008, dois anos após se eleger, Morales lançou uma política de industrialização do lítio, dividida em três fases, que deveria ir além da simples extração. Na primeira, o carbonato de lítio seria extraído. Na segunda, por meio de alianças com companhias internacionais, seriam desenvolvidos processos industriais com o metal e outros elementos obtidos na extração, como o potássio, usado como fertilizante agrícola. Na terceira, finalmente, seriam produzidas baterias de lítio.

Complexos industriais

Entre 2015 e 2018, complexos industriais foram construídos no Salar de Uyuni, onde estão as reservas. A obra foi feita pela empresa chinesa CAMC Engineering, com a meta de produção anual de 350 mil toneladas de potássio. Em abril de 2018, teve início a terceira fase. A empresa alemã ACI Systems foi escolhida para a industrialização do lítio, e fechou um acordo para criação de uma empresa público-privada, com participação majoritária boliviana (51%). O objetivo era produzir entre 300 e 400 mil baterias de lítio por ano, para o mercado alemão.

Segundo Romero Valenzuela, a empreitada era “muito difícil”. Presente em salmouras subterrâneas no Salar de Uyuni, o lítio é extraído por meio de um processo complexo, que exige um procedimento específico para cada região. No Salar de Uyuni, há uma alta concentração de magnésio, que deve ser separado,e a mera cópia da técnica usada no Chile não é viável. Há poucos especialistas no mundo no assunto, ainda mais na Bolívia.

Limitações da empresa alemã, uma pequena firma de tecnologia sem experiência na produção de lítio, acentuaram as dificuldades. Há relatos de que o governo alemão atuou fortemente para que a ACI fosse escolhida no lugar de investidores chineses, mesmo sem que a empresa tivesse contratos com grandes produtoras automobilísticas. Com o tempo, a capacidade da firma de produzir em larga escala passou a ser questionada.

As dúvidas foram reforçadas por uma resistência que emergiu na região do salar, conduzida por mineiros. Potosí, onde se encontram as reservas, é o departamento mais pobre da Bolívia. Pouco após a assinatura do contrato com a ACI, um movimento opositor exigia ver detalhes do acordo, e reivindicava que os royalties para a região ultrapassassem os 3% previstos em lei. No começo de outubro deste ano, cerca de duas semanas antes das eleições do dia 20, o movimento de Potosí iniciou uma greve contra o acordo com a empresa alemã. O movimento, liderado pelo Comitê Cívico de Potosí, empregava o tipo de retórica nacionalista conhecida de Morales, e alegava defender os recursos bolivianos:

— É exatamente o tipo de preocupação que Morales usava para criticar contratos que a Bolívia fazia com empresas de gás quando era sindicalista — afirmou Robert Albro, especialista em Bolívia da American University, em Washington.

Segundo Albro, embora fosse “parte do cenário”, o movimento potosino não foi o mais determinante para o enfraquecimento de Morales, que, depois de 13 anos no poder, se desgastara. Conforme os protestos contra o resultado da eleição do dia 20, na qual Morales foi declarado vencedor, se intensificavam, o presidente quis “mostrar-se preocupado com questões locais” e, no dia 3 de novembro, cancelou o acordo com a ACI.

Liderança potosina

Dentre os líderes de Potosí, um deles viria a ter papel significativo no movimento de oposição a Morales: Marco Antonio Pumari , presidente do Comitê Cívico do departamento.  Localizados nas principais regiões bolivianas, os Comitês Cívicos são associações civis, frequentemente lideradas por empresários em busca de trampolins para carreiras na política.

Aos 38 anos, Pumari permanece uma figura obscura. Sabe-se que seu pai foi mineiro, e que sua entrada na cena política boliviana é recente. Sua participação na política foi como líder estudantil na Universidade Autónoma Tomás Frías, em Potosí, onde estudou administração de empresas.

Depois da saída de Morales, Pumari foi cotado para ser candidato a vice-presidente em uma chapa liderada por Luis Fernando Camacho , líder radical ultraconservador, presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz. A relação entre os dois foi estremecida no último sábado, quando Camacho anunciou que Pumari não será seu vice. Camacho disse que havia “uma diferença de princípios”.

Ontem, Camacho divulgou que Pumari teria lhe pedido US$ 250 mil. O líder potosino afirma que precisava de recursos para a “a logística” da campanha. Segundo ele, Camacho começou agora uma campanha de “difamação”.

Regulação pode mudar

Nenhum dos quatro especialistas em geopolítica do lítio e política boliviana consultados entende que o lítio tenha sido determinante para a queda de Morales. Mesmo os que consideram que houve um golpe no país , pois a sua Constituição não autoriza que as Forças Armadas “peçam” uma renúncia, minimizam o poder da oposição potosina, e não veem a ação de forças estrangeiras ocultas.

A cientista política especialida em lítio Thea Riofrancos, da Universidade Providence, afirma que há no momento “um excesso do produto no mercado”, com os preços em baixa. Riofrancos acredita que Morales “blefou” ao cancelar o acordo, à espera de que a firma alemã voltasse à mesa de negociações com mais vantagens. A pesquisadora ressalta que, embora seja improvável que Morales tenha sido vítima de uma conspiração por causa do lítio, é possível que, com a mudança de governo, o mercado de fato seja aberto à exploração de empresas estrangeiras.

— Concordo que houve um golpe, mas não acredito que a motivação foram as vastas e quase intocadas reservas bolivianas de lítio — disse Riofrancos. — Mesmo assim, se qualquer outro partido fora o MAS (Movimento ao Socialismo) se eleger, a estrutura regulatória será alterada. O lítio não foi relevante para o golpe, mas o que vier a acontecer será relevante para o lítio.

Javiera Barandián, professora de política ambiental na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, diz que “as mudanças ainda vão demorar”. Ela afirma que “talvez haja mudanças e ajustes”, mas considera muito difícil “uma mudança radical”. Para ela, “embora muito criticado, o programa industrial foi muito exitoso”, sobretudo pela corrente produção de potássio.

— Há um processo muito longo de aprendizado, e já produzem o potássio como fertilizante e outros produtos, com a construção de novas estruturas de desenvolvimento e aplicação industrial. Ganhe quem ganhe, o programa de industrialização teve muito êxito.