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Farc reconhecem, em tribunal de paz da Colômbia, que cometeram sequestros sistemáticos e crimes contra a Humanidade

Líderes de ex-grupo guerrilheiro assumem pelo primeira vez uma de suas mais cruéis táticas, em mais uma etapa do processo de pacificação colombiano
Mulher corre em frente a mural do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe pichado para ofender as Farc em Bogotá Foto: Juan Barreto / AFP
Mulher corre em frente a mural do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe pichado para ofender as Farc em Bogotá Foto: Juan Barreto / AFP

BOGOTÁ - Pela primeira vez na História, líderes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) reconheceram diante da Justiça que cometeram sequestros sistemáticos durante sua guerra contra o governo colombiano, como mais uma medida do processo de paz em curso no país.

Até então, o ex-grupo guerrilheiro usava o eufemismo “política de retenção” para se referir aos sequestros. Agora imerso na implementação do acordo de paz, no entanto, admitiu que se valeu do rapto como mais uma tática de guerra, assumindo por consequência que cometeu crimes de guerra e crimes contra a Humanidade.

— [As Farc] assumem claramente a responsabilidade pelos sequestros ocorridos e reconhecem explicitamente o sofrimento infligido injustificadamente às vítimas, suas famílias, amigos e, claro, toda a sociedade colombiana — disse Carlos Antonio Lozada, ex-líder das Farc e hoje um dos principais nomes do Comunes, partido político formado por ex-membros da organização.

Cerca de 13 mil membros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) se desmobilizaram após um acordo de paz assinado em 2016 com o governo colombiano.

Segundo o acordo, os ex-rebeldes devem fornecer informações ao tribunal de Jurisdição Especial para a Paz (JEP) relacionadas a crimes cometidos durante o conflito, incluindo assassinatos, sequestros, violência sexual e despejos forçados. O reconhecimento de crimes pode levar a sentenças menores.

Os reféns sofreram condições "precárias e difíceis", acrescentou Lozada, que atua no Senado, em uma vaga garantida pelo acordo de paz.

Entre 1990 e 2015, 21.396 pessoas foram sequestradas ou feitas reféns pelas FARC, segundo dados do tribunal.

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Em um documento de 130 páginas entregue ao tribunal de paz assinado por sete lideranças das Farc, eles afirmam que cometeram os sequestros principalmente para se financiar, mas também para forçar o governo a aceitar a libertação de guerrilheiros presos, para dominar o território e a população civil e para obter vantagens militares.

O dossiê detalhando a responsabilidade do grupo é uma resposta formal ao tribunal de paz após um indiciamento  em janeiro por vários crimes de guerra e crimes contra a humanidade relacionados ao sequestro, uma de suas práticas mais cruéis e repudiadas.

Além de reconhecerem seu envolvimento direto em crimes dessa natureza, os ex-combatentes afirmam que os reféns sofreram maus-tratos. “Essas circunstâncias ocorreram no contexto das difíceis condições da guerra. Tais comportamentos nunca deveriam ter ocorrido ”, acrescentam.

O reconhecimento da culpa não significa que os ex-combatentes serão automaticamente presos, pois o acordo prevê punições alternativas em troca da confissão de seus crimes e reparação das vítimas, mas carrega um enorme poder simbólico.

“O sequestro é um fato inaceitável e injustificável jurídica e politicamente”, diz a carta, que também detalha as condições de vida dos sequestrados, que, em alguns casos, morreram por falta de saneamento. Em uma ocasião, durante uma reunião de reconciliação, uma pessoa sequestrada perguntou ao seu captor:

— Por que você me manteve amarrado a uma vara durante anos?

A despeito do reconhecimento dos sequestros, as Farc negaram que tenham cometido uma política de estupro como tática militar. As vítimas pediram aos guerrilheiros que assumissem esse ponto. Finalmente, eles não o fizeram, argumentando que foram eventos isolados. Os líderes também argumentaram que os abusos sexuais cometidos por seus soldados eram julgados por eles mesmos. No caso de serem considerados culpados, estavam sujeitos à pena de morte.

Em outro dos pontos importantes do texto, as Farc se comprometem a localizar os corpos de 100 pessoas que foram sequestradas, executadas e enterradas em local não identificado. O processo de investigação, lento e caro, já começou, mas o trabalho de campo ainda precisa ser feito, o que, em um território tão extenso e acidentado como o da Colômbia não é uma tarefa fácil.