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França atravessa polarização política peculiar e aumento da proliferação de teorias conspiratórias

Em vez de divididas em dois campos, preferências da população se pulverizam, o que impede Macron de alcançar popularidade como a de Merkel
O presidente francês Emmanuel Macron discursa para os 150 membros da Convenção dos Cidadãos sobre Mudanças Climáticas no Palácio do Eliseu Foto: CHRISTIAN HARTMANN / AFP
O presidente francês Emmanuel Macron discursa para os 150 membros da Convenção dos Cidadãos sobre Mudanças Climáticas no Palácio do Eliseu Foto: CHRISTIAN HARTMANN / AFP

PARIS — Historicamente, crises provocadas por catástrofes naturais, crashes econômicos, atentados terroristas, ameaças externas ou pandemias costumam favorecer a união nacional e impulsionar os índices de popularidade do chefe da nação. Durante a crise da Covid-19 , no entanto, o presidente francês, Emmanuel Macron, registrou um modesto ganho de apreciação pública, inferior aos índices alcançados por homólogos europeus.

Segundo especialistas, cada vez mais este fenômeno de opinião se revela de curta duração e de menor impacto na França, principalmente por causa de uma crescente polarização política e uma forte desconfiança dos cidadãos em relação às instituições,descrédito também estimulado por métodos de desinformação.

Na pandemia, o chamado “r ally’round the flag effect ” (efeito do união em torno da bandeira) — expressão criada em 1970 pelo cientista político americano John Mueller para explicar a popularidade de presidentes dos EUA em tempos de crise — elevou o índice de aprovação da chanceler alemã, Angela Merkel, a 74%. Na Itália, o premier Giuseppe Conte conquistou mais de 60% de opiniões favoráveis. Já Macron obteve um acréscimo de 10 a 14 pontos percentuais no início da pandemia, chegando ao máximo de 44% (hoje está com 41%, segundo pesquisa do instituto Ifop).

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Para Bruno Jeanbart, diretor-geral adjunto do instituto OpinionWay e autor do ensaio “A Presidência anormal — nas raízes da eleição de Emmanuel Macron”, a França está, hoje, politicamente pulverizada, com cada campo encerrado em suas próprias convicções e ambições, o que dificulta uma união nacional e também complica a governança e o quadro eleitoral.

— Nos anos 1970 e até 1981, quando o socialista François Mitterrand ascendeu ao poder, a diferença ideológica entre esquerda e direita era muito forte. Houve muita inquietação com a vitória do Partido Socialista (PS), pessoas com medo, se perguntando se permaneceriam na França. Até meados dos anos 2000, a polarização se tornou menos marcante. Mas desde então, o fenômeno voltou, e não somente na clivagem esquerda-direita, mas se ampliou, e se veem cada vez mais posições políticas afirmadas e distantes.

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Jeanbart aponta um sistema político mal preparado para digerir esta polarização peculiar, na qual o presidente é eleito no primeiro turno com uma fraca porcentagem de votos e governa com uma frágil maioria parlamentar:

— Macron obteve 24% dos votos no primeiro turno. A maioria na Assembleia Nacional pode ser obtida com cerca de 30% dos votos. Você tem uma pequena base eleitoral e a maioria do poder. Em países parlamentaristas como a Alemanha, governa-se por coalizões mais amplas.

Presidente e rainha

Segundo Jeanbart, a França segue a tendência do pleito presidencial americano, no qual apenas 3% dos eleitores diziam apreciar tanto o candidato democrata Joe Biden como o republicano Donald Trump. Além disso, com a redução de sete para cinco anos do mandato presidencial, em 2002, a função do primeiro-ministro como protetor do presidente desapareceu.

— Antes, o presidente francês podia atuar ao mesmo tempo como Angela Merkel e a rainha da Inglaterra. Hoje, a dimensão rainha da Inglaterra sumiu. É o presidente que vai para a linha de frente, deve prestar contas e sofre o descontentamento da população. Por isso, com frequência o premier tem mais aprovação do que o presidente.

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Para o sociólogo Michel Wieviorka, diretor de pesquisas na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Macron acreditou que poderia governar com um discurso “mítico”: uma construção imaginária para solucionar contradições.

— O mito de Macron é resumido na expressão “ao mesmo tempo”. Ele propôs um discurso de direita e de esquerda ao mesmo tempo. Mas um discurso mítico não dura eternamente e não resiste à realidade, que se tornou cada vez mais difícil. Depois da revolta dos coletes amarelos e dos protestos contra a reforma da aposentadoria, vieram a crise da Covid-19 e a questão do terrorismo. E a França de hoje é uma sociedade fragmentada, com todo tipo de grupos sociais, culturais, religiosos, com demandas diferentes, em cólera e insatisfeitos.

QAnon à francesa

Macron, segundo Wieviorka, considerou a mediação um obstáculo para governar, privilegiou um poder centralizado e, hoje, forçado pela epidemia a adotar uma política econômica redistributiva e com um corpo de ministros sintonizado à direita, cria enormes tensões no país. Um dos exemplos é o projeto de lei contra o Islã radical para lutar contra o terrorismo. Outro é a Lei de Segurança Global, que provocou protestos ao pretender restringir a divulgação de vídeos de ações policiais.

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— É uma clivagem que aparece hoje, entre republicanos puros e duros de discurso repressivo, e democratas defensores das liberdades e do Estado de Direito. Ele se sente obrigado a dar uma satisfação a uma direita radical, que reclama medidas bem mais severas em relação aos muçulmanos. A sociedade política francesa está fracionada. Há a extrema direita de Marine Le Pen (Reunião Nacional), a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon (França Insubmissa) e o presidente. E fora disso há uma pulverização, nada se mantém, nada convence fortemente e tudo resta a reconstruir.

Para analistas, a polarização é manifestada no aumento da adesão a teorias conspiratórias e práticas de desinformação reverberadas em sites na internet e nas redes sociais. As teses de complô do movimento americano QAnon alcançaram eco na França. E o documentário francês “Hold-up”, com teorias conspiratórias mundiais sobre a Covid-19, foi assistido por quase 3 milhões de pessoas na semana de seu lançamento e depois viralizado nas redes sociais.

Para o analista político Rémi Lefebvre, da Universidade de Lille, o fenômeno reflete o aumento do descrédito da população nas instituições.

— Isso é pior aqui na França do que em outros países. Na Inglaterra, Itália ou Alemanha, os cidadãos mostram bem mais confiança no Estado. Aqui, vemos uma enorme crise de confiança. Principalmente porque aqui se espera muito do Estado, que não é mais considerado como um ator crível e confiável. Evidentemente, a crise da Covid-19 reforçou isso. A confusão e a dúvida alimentam a desconfiança. É algo que se tornou um real problema na França.

Christophe Bouillaud, do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, acredita que desinformação e as teorias conspiratórias têm êxito também por causa do modus operandi político francês.

— Isso vem da maneira de se governar a França desde os anos 1980, sem uma maioria social e política suficiente, e da consequente falta de confiança nos políticos. E com este sistema, Marine Le Pen se aproxima cada vez mais do poder.