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França esquecida se levanta com coletes amarelos contra governo Macron

Aumento dos combustíveis e empobrecimento levam setores da classe média baixa a se insurgir

Descontentamento. Coletes amarelos gritam slogans contra o governo Macron numa barricada improvisada junto ao Arco do Triunfo, na Avenidas dos Champs-Elysées, em Paris: proliferação de grupos a partir de uma petição na internet
Foto: FRANCOIS GUILLOT / FRANCOIS GUILLOT/AFP
Descontentamento. Coletes amarelos gritam slogans contra o governo Macron numa barricada improvisada junto ao Arco do Triunfo, na Avenidas dos Champs-Elysées, em Paris: proliferação de grupos a partir de uma petição na internet Foto: FRANCOIS GUILLOT / FRANCOIS GUILLOT/AFP

RIO — O pretexto para a indignação são os aumentos nos preços dos combustíveis e a queda no poder de compra. Os métodos remetem aos de outros levantes globais recentes, como a ausência de líderes, apartidarismo, reivindicações difusas e convocações pela internet. As consequências imediatas são centenas de milhares de pessoas ocupando estradas, centenas de bloqueios, mais de 500 casos de violência até a última sexta-feira, incluindo duas mortes, e mais um desafio a se acumular para o presidente francês, Emmanuel Macron .

O movimento, que começou no último sábado, dia 17, e tem por símbolo os “coletes amarelos” ( gilet jaunes , acessório de segurança usado em emergências de trânsito), expressa a ira de uma classe média baixa, um setor que se considera menosprezado pelos políticos, vistos como indiferentes às dificuldades cotidianas e a favor dos ricos.

— Este movimento sublinha um novo contexto de saturação das frustrações, depois de meses de “estado de graça” para o presidente Macron. Os dias duros de sua Presidência estão por vir — diz o sociólogo Louis Chauvel, da Universidade de Luxemburgo.

As mobilizações acontecem no momento em que o presidente enfrenta seu pior índice de popularidade: 25%, de acordo com uma pesquisa publicada há uma semana no “Journal de Dimanche” e realizada antes dos protestos.

Nesta semana, Macron, que se elegeu com uma imagem “jupiteriana” e a promessa de mostrar-se altivo perante a pressão de protestos, afirmou que a saída para a crise está no “diálogo” e na “explicação”. Uma pesquisa divulgada pelo “Le Figaro” anteontem, no entanto, mostra que 77% dos franceses acham que os protestos são legítimos, o que indica que a desconexão com a classe política é generalizada.

Imposto carbono

O principal motivo alegado para os protestos é o aumento dos combustíveis. Entre outubro de 2017 e outubro de 2018, o diesel — o principal motivo de controvérsia — subiu 23%, e a gasolina aumentou 15%. Impostos compõem de 56% a 60% do preço. As variações dependem do valor internacional do barril, do câmbio euro-dólar , da demanda e das taxas.

As taxas sobre o diesel aumentaram € 0,076 por litro desde o dia 1º de janeiro deste ano. Isto acontece sobretudo pela alta internacional do barril, mas também pelo “imposto carbono”, política ambiental para tornar o combustível mais caro do que a gasolina, por poluir mais. Essa política deveria ser reforçada em 2019 e depois novamente em 2022.

De acordo com Louis Maurin, diretor do Observatório das Desigualdades, instituto de pesquisa em Paris, a alta tem um “impacto psicológico” forte em populações que vivem em ambientes rurais afastados (cerca de 5% da população) ou em ambientes periurbanos (cerca de 25%), nos quais “o automóvel ocupa um espaço importante no modo de vida”:

— Estes não são os franceses mais pobres, porque estes não têm carro — diz o pesquisador. — Quem está sendo penalizado são camadas populares que têm necessidade do próprio carro e meios precários.

São setores que foram beneficiados pelo crescimento econômico durante os “30 anos gloriosos”, de 1945 a 1975, e agora enfrentam uma queda na renda. Segundo Olivier Rozenberg, cientista político da Sciences Po, os protestos têm origem na “França periférica”, a classe média baixa branca que vive longe dos grandes centros e tem mais dificuldade de acesso a serviços públicos como saúde, educação e transporte. Essa população, afirma, sente-se “isolada” e que “paga pelos ricos”.

— O movimento põe o dedo na fraqueza de Macron, que é ser associado ao presidente dos ricos, distante da vida comum dos cidadãos — diz ele.

Maurin ressalta que, ao mesmo tempo em que impostos sobre o combustível aumentaram, outras taxas foram reduzidas: sobre habitação, sobre fortunas, contribuições para a segurança social e sobre o rendimento das propriedades. Embora alguns desses cortes, como os impostos sobre habitação, beneficiem todos os franceses, outros, como a contribuição sobre fortunas e sobre o patrimônio, só são aplicáveis aos mais ricos. Isso geraria uma sensação de injustiça.

— Os cortes de impostos para os que estão em melhor situação representam um custo de € 5 bilhões por ano para algumas centenas de milhares — diz Maurin. — Uma grande parte da população entende mal o modo como os impostos funcionam. Você aceita pagar se souber os motivos. Os contribuintes aprenderam uma coisa: alguns pagam pelos outros.

Junho de 2013 à francesa

Os setores marginalizados encontraram um ambiente propício à organização no Facebook. Após uma petição no site change.org, houve uma proliferação de grupos, eventos e vídeos virais. Sem lideranças definidas, a exemplo do que aconteceu em outros lugares, como o Brasil e a Turquia em junho de 2013, ou na própria França no ano passado, com o Nuit Debout (noite de pé).

— Esta mobilização sem nenhuma reivindicação clara, que não parece se apoiar sobre nenhuma base sindical ou política, sem líderes, é equivalente para a França dos empobrecidos ao que foi o Nuit Debout para os jovens diplomados e precários —diz o professor de comunicação da Universidade de Nantes Olivier Ertzscheid, em referência ao movimento de esquerda, composto principalmente por universitários e intelectuais, contra as reformas trabalhistas.

Apesar da composição diferente, assim como no caso do Nuit Debout episódios de violência foram registrados. Segundo o ministro do Interior, até sexta-feira 528 pessoas, incluindo 92 policiais, ficaram feridas. Nas Costas da Armória, na Bretanha, manifestantes realizaram ataques com barras de ferro e coquetéis molotov. Muitos casos de violência, incluindo saques, foram registrados na Ilha da Reunião, onde o movimento carateriza-se por ser mais jovem do que no resto do país. As duas mortes envolveram carros tentando se desviar de bloqueios.

Os casos de violência minam o apoio ao movimento. Outro fator de desestabilização foi a identificação de membros da extrema direita entre os manifestantes. Por ora, apesar do apoio da ex-candidata a presidente Marine Le Pen, da ultranacionalista Reunião Nacional (a antiga Frente Nacional), os coletes amarelos permanecem espontâneos, acéfalos e difusos.

Essas características lançam dúvidas sobre qual pode ser o seu futuro. Segundo Rozenberg, os manifestantes têm perfil semelhante aos dos eleitores da extrema direita, que obteve 35% dos votos no segundo turno em 2017. Isso, ele diz, acaba por afastá-los ainda mais de Macron:

— De um ponto de vista cínico, convencer essas pessoas não é uma prioridade para Macron — afirma.— O movimento parece cada vez mais radical, e houve relatos de violência racial. Não acho que a mobilização vá aumentar.

O sociólogo Chauvel, por sua vez, pensa que os protestos fortalecem o radicalismo:

— O populismo, a contestação radical e a convergência entre demandas radicais de esquerda e uma política identitária de direita, que inclui a xenofobia, serão mais prováveis — ele diz. — O incerto hoje é em que medida as frustrações vão gerar apatia ou violência.