A batalha pública entre o bilionário Elon Musk e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, talvez seja o prenúncio do que promete se tornar uma guerra de titãs na arena global. Mais do que nunca, informação é sinônimo de poder econômico e político. É neste front que governos e empresas — sobretudo as gigantes da tecnologia — se enfrentam.
Vence quem tiver o domínio do fluxo internacional de dados. O avanço exponencial da inteligência artificial (IA), especialmente a generativa, só potencializa este embate. É isto o que está em jogo no debate sobre sua regulamentação e aplicação que ocorre em cada país, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e, agora, no G20.
— Desde o surgimento da internet há esse debate. Temos que ter autonomia, soberania. A partir disso, se fazem negócios. Acontece que (esse dados) têm dono. As plataformas têm dono, e você esbarra nisso — disse ao GLOBO a ministra de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, que comanda a vertente da IA no Grupo de Trabalho sobre economia digital do G20.
O tema está na mira da presidência brasileira do G20, que quer uma resposta de consenso das 19 maiores economias do mundo mais União Europeia e União Africana aos desafios impostos pela IA. Não por acaso, o Brasil trabalha para que um capítulo do documento final, a ser anunciado em novembro na cúpula de chefes de Estado, no Rio, trate do assunto.
A ideia é buscar no multilateralismo equilíbrio entre as nações desenvolvidas e em desenvolvimento e força para enfrentar os grandes conglomerados, alguns com peso econômico maior do que o de muitos países. A IA permeia as agendas de diversos grupos de engajamento no âmbito do G20, entre eles o S20 (de ciência) e B20 (de empresas).
Lados positivo e negativo
A ministra afirma que a economia digital pode elevar as desigualdades à enésima potência. Esta é uma das preocupações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que recebeu alertas reservados da ONU de que o Sul Global precisa estar protegido por regras e punições, sem estar a reboque das nações ricas.
— É como a fabricação de automóveis. Um carro na Europa tem mais itens de segurança do que no Brasil. Quanto mais cauteloso o país, mais as empresas têm menos possibilidade de explorar ou deixar pontos falhos — disse o pesquisador do Netlab da UFRJ, Fernando Ferreira.
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Na Europa, segundo ele, já se fala em proteção aos dados e a regulação do uso de IA. No Brasil, há a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que fala em dados sensíveis. Mas não há nada sobre responsabilidade das plataformas de redes sociais e uso de IA.
É nesse contexto que as Big Techs tentam marcar território. Na corrida pelo domínio da informação, elas têm investido bilhões de dólares em maior velocidade de processamento e armazenamento de dados.
Acumulam dados de economias, empresas e cidadãos, mas não necessariamente os compartilham. Querem evitar regras demais ou tributos sobre o ganho que obtêm com as informações que acumulam. Esse é um dos grandes temores de governos em meio a segmento cada vez mais concentrado.
Para a ministra, é fundamental fazer um diagnóstico de quanto o Brasil e outros países em desenvolvimento são produtores ou consumidores dessas tecnologias, porque isso também vai determinar seu lugar nesta corrida. Ela afirma que a IA pode ser revolucionária, mas também pode ter efeitos deletérios em economias e democracias.
— Já há uso da IA em cadeias produtivas, do agronegócio, por exemplo, saúde privada, Judiciário e educação, mas também na luta política. Vimos na eleição na Argentina, com o uso deepfakes. Por isso mesmo, a luta para que se regulamente. Isso pode se dar em vários ângulos, pode ser usado de maneira criminosa, para difamar pessoas, criar fake news — ressaltou Luciana.
O G20 tem um grupo de trabalho de economia digital, no qual o Brasil resolveu tratar de quatro temas prioritários: a IA, a integridade da informação (que inclui combate à desinformação e discurso do ódio), governo digital e conectividade significativa. Mas a IA passa por outras agendas, como saúde, mudança do clima e comércio, tanto eletrônico quanto físico.
Brasil terá regulação
Neste momento, o Brasil discute internamente sua própria estratégia de IA, que deve ser apresentada ao presidente Lula em junho. O debate nacional deve municiar as posições brasileiras no G20. Também deve balizar a discussão o Pacto Digital Global, que será aprovado pela ONU em setembro na Cúpula do Futuro, em Nova York.
— Não adianta olhar para o G20 como se fosse uma sala fechada — disse João Brant, secretário de Políticas Digitais na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
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Segundo Brant, é preciso evitar que as redes sejam multiplicadores de informações falsas e garantir que remunerem adequadamente os produtores de conteúdo:
— O jornalismo está sofrendo economicamente no mundo inteiro. Tem mais investimentos, mas as plataformas absorveram parte muito significativa das receitas.
Outra tarefa do G20 é a de mapear o impacto do discurso do ódio nas redes. Isso é subsídio fundamental para o desenho da regulamentação.
Para Ferreira, da UFRJ, a questão mais preocupante está no desenvolvimento de modelos de IA.
— Chegamos a um ponto em que o poder dos desenvolvedores de IA é muito grande. Têm capacidade impressionante de geração de conteúdo, de análise — disse o pesquisador. — Falava-se antes do domínio de nações, mas estamos falando de empresas.
Ele questiona a posição do Brasil na corrida da IA:
— Que dados são usados, qual o viés e como o viés está sendo usado? Como se dá a validação desta tecnologia? Nesse momento não tem regra para nada. As tecnologias são importadas. É uma questão de segurança nacional. Qual é o modelo nacional?
O especialista lembra que, na UE, que acaba de aprovar uma lei para IA, se discute-se a criação de um centro de inteligência artificial nos moldes do CERN (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear). No Brasil, segundo a ministra, está em discussão a criação de uma agência reguladora, pois o tema exige mais do que um comitê de gestor de internet.
Novas habilidades
Mas nem só de riscos vive a IA. Para Milton Beck, diretor-geral da rede social LinkedIn, as pessoas veem na IA uma forma de se livrar de tarefas repetitivas. Segundo dados levantados pela plataforma, o interesse em empregos com IA subiu 12% no mundo e 18% no Brasil. Cerca de 50% dos usuários já experimentaram o ChatGPT, e 76% acham que a IA vai lhes permitir dizer adeus a tarefas repetitivas.
— Claro que existe receio da IA em termos de emprego. E alguns devem deixar de existir. Muitas tarefas vão deixar de ser exercidas. Foi assim quando surgiram o Visicalc, o Lotus 123 e o Excel. Achava-se que os contadores iam sumir. Mas isso não aconteceu — disse Beck.
O LinkedIn monitora as habilidades exigidas pelo mercado de trabalho. E, segundo Beck, de 2015 até agora elas mudaram em 25%. Só que, daqui até 2030, esse percentual vai atingir 65%.
Ou seja, deve se agravar o gargalo na formação de capital humano no Brasil. Até 2025, segundo a ministra, o país terá um déficit de 500 mil profissionais para preencher as vagas na área de IA.