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Governo da Etiópia decretou fim da guerra em Tigré, mas tensão domina capital

Primeiro-ministro afirma que conflito, que durou 24 dias, chegou ao fim, mas líderes rebeldes estão foragidos e pessoas da etnia que vivem em Adis Abeba se sentem perseguidas
Refugiados da região de Tigré, na Etiópia, após conflitos entre governo federal e rebeldes Foto: YASUYOSHI CHIBA / AFP
Refugiados da região de Tigré, na Etiópia, após conflitos entre governo federal e rebeldes Foto: YASUYOSHI CHIBA / AFP

ADIS ABEBA — A guerra do governo da Etiópia contra a população da região de Tigré, no mês passado, durou 24 dias. Porém, embora o Exército federal tenha vencido o conflito e o dado como encerrado, ele continua aberto. A queda de Mek'ele, capital da zona rebelde, colocou apenas um aparente fim ao confronto, em 27 de novembro. Naquele dia, o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, anunciou o fim das hostilidades. O que ele não disse foi que seu principal inimigo, o líder tigré Debretsion Gebremichael, e os militantes da Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT) fugiram ao romper o cerco militar.

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A região do Tigré fica a cerca de 800 quilômetros ao norte de Adis Abeba, mas a capital etíope vive situações preocupantes, apesar da distância. Há medo de um ataque da guerrilha e medo de represálias contra os tigrés que moram na cidade. À noite, as vans da polícia cruzam as rotatórias das avenidas largas e controlam os carros, um a um. Eles dão atenção especial aos táxis e veículos Riders, a mais importante empresa de transporte privado do país. Eles revistam minuciosamente os passageiros, assim como o porta-malas, a parte inferior dos assentos e o porta-luvas. A obsessão do governo é garantir segurança.

Enquanto isso, os milhares de cidadãos da etnia tigré na capital sabem que a guerra os tornou alvo. Há batidas e prisões seletivas, segundo algumas organizações humanitárias, e também uma perseguição em ambientes fechados, mais difíceis de detectar. É o que conta um balconista, de 26 anos, de uma loja de loja de roupas no distrito central de Bole.

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— Por ser tigré, você não se sente seguro ou bem-vindo entre as pessoas. Eles estão cheios de ódio contra nós. Não podemos falar livremente na nossa língua — conta o jovem, que, por motivos de segurança, preferiu se manter anônimo. —  Só quero levar uma vida normal, mas meus amigos sabem que sou um tigré e me acusam de pertencer à guerrilha ou de apoiá-la.

Conflito ocorre na região de Tigré Foto: Editoria de arte / O Globo
Conflito ocorre na região de Tigré Foto: Editoria de arte / O Globo

A comunidade tigré representa apenas 6% dos cerca de 110 milhões de etíopes no país, mas a FLPT dominou a coalizão no poder em Adis Abeba por décadas. Isso só mudou quando Abiy Ahmed, da etnia oromo, chegou ao poder em 2018, trazendo a esperança de renovação e de unificar o país. No entanto, as divergências entre os dois grupos culminaram no confronto armado, principalmente depois que o governo acusou a FLPT de armar milícias e atacar uma base militar.

As forças federais responderam com uma guerra para a qual não há números oficiais de vítimas, mas que fez com que dezenas de milhares de pessoas fugissem para regiões vizinhas e para o Sudão. Há ainda a denúncia de que um grupo de jovens pró-FLPT teria assassinado a facadas 600 civis do grupo étnico amhara na cidade de Mai Kadra.

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Com o conflito, Tigré foi totalmente isolada pelo Exército federal e pelas milícias dos grupos étnicos amhara e afar, dos estados vizinhos. Um general de quatro estrelas, de 55 anos, que se considera perseguido pelo expurgo de Ahmed no exército e morador da capital, disse que não conseguia entrar em contato com seu filho em Mek'ele:

— Ele nos ligou de um telefone da Unicef alguns dias depois do início da guerra. Agora não há mais essa conexão. Ele disse que estava bem, mas várias semanas se passaram e não sabemos nada sobre ele — diz o general, que também não quis dar seu nome. Questionado sobre de que lado ele lutaria nessa guerra, ele encolheu os ombros e disse — Esta não é mais a minha guerra.

Outros conseguiram sair da região com grande dificuldade. David Unzueta, de 36 anos, foi surpreendido pela guerra em Mek'ele. Ele trabalha na fundação basca Etiópia Utopia, estabelecida no Tigré desde 2009.

— No primeiro dia eles cortaram a Internet. O estranho é que os telefonemas também não funcionavam. Imediatamente percebi que era sério porque estávamos isolados do exterior. A vida diária era aparentemente normal. Os cafés e lojas ainda estavam abertos, mas o combustível estava acabando e os geradores de eletricidade estavam começando a parar de funcionar. O mais preocupante para mim é que os bancos fecharam e o dinheiro acabou — conta Unzueta.

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O espanhol relata o que passou, agora a salvo, em San Sebastián, na Espanha:

— Dez dias após o início da guerra, nós juntamos cinco europeus e conseguimos uma van com um motorista local. Ele salvou nossas vidas porque tivemos que passar por vários postos de controle militares antes de chegar a Adis Abeba. Estou convencido de que nos deixaram seguir o caminho porque éramos brancos. Havia viajantes negros com passaportes estrangeiros, mas eles o expulsaram. Eu vi pessoas chorando em desespero. Ao chegar à capital, peguei o primeiro voo para a Espanha.

Medo em Adis Abeba

Entre os que ficaram para trás, na capital, também há universitários tigrés preocupados com o futuro. As aulas nas universidades deveriam ter começado em outubro, mas o governo as adiou, sem dar nenhuma data, por causa da pandemia da Covid-19. Um dos alunos, que também não quer se identificar, conta das dificuldades de ser tigré em Adis Abeba.

— Minha identidade é tigré e isso não vai mudar. Não escolhi a minha etnia, mas, antes de tudo, sinto-me etíope— diz o jovem, que trabalha meio período no Hospital da Polícia para pagar seus estudos em Administração de Empresas.

Seu pai era policial e, quando Ahmed assumiu o poder, foi expulso por um ano. Ele faleceu no mês passado — Eles nos insultam anonimamente nas redes sociais, mas eu não entro na confusão porque seria pior.

Muluberhan Mekonen é outra estudante universitária tigré. Assim como os demais, ela também sente a perseguição por causa de sua etnia.

— Eu trabalho para ajudar minha família, que mora em Adua. Costumo mandar dinheiro para ela todo mês, mas, com a guerra, todas as contas dos tigrés estão bloqueadas pelo governo. Estou muito preocupada porque não consigo enviar dinheiro para eles —diz ela.

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O povo tigré encenou uma das revoluções africanas do século passado. Em 1991, guerrilheiros do norte tomaram Adis Abeba e derrubaram o regime comunista de Mengistú Haile Mariam. Eles assumiram o poder e alimentaram o sonho de um grande Tigré independente que incluía a vizinha Eritreia, onde metade da população é da mesma etnia. Por quase 30 anos, o dinheiro do estado financiou a FLPT e modernizou a região: sua capital, Mek'ele, tem três universidades; possui infraestruturas modernas e está em construção a ligação ferroviária com a capital do país.

— Os milicianos da FLPT estão na trincheira, se rearmando para lançar uma ofensiva das montanhas. Mas eles sabem que são uma força moribunda e só querem ganhar tempo antes da derrota final. Desde que os tigrés fizeram a revolução, quase 30 anos se passaram. Esses são os filhotes desses revolucionários, mas não têm formação militar — ponderou Getachew Eyob, microbiologista de 55 anos e ativista em várias organizações civis.

Durante os 24 dias de conflito, as principais cidades de Tigré, incluindo Mek'ele, caíram uma a uma. Mas o centro da região, um sistema montanhoso com picos superiores a 4 mil metros, está como antes, sob o controle de tigrés, segundo analistas locais independentes.

Na ausência de notícias confiáveis do front de guerra, a imagem do primeiro-ministro se fortaleceu no país. Fontes diplomáticas em Adis Abeba interpretam o "golpe contra o Norte" como um aviso aos marinheiros sobre conflitos futuros. Abiy Ahmed tem dado a sua versão sobre o confronto a semana toda em discursos de várias horas na televisão e no rádio; tudo para insistir que a guerra acabou. Mas ele sabe que o líder tigré está foragido. Algumas fontes ocidentais o colocam nos subúrbios de Mek'ele. Enquanto isso, na capital do país, eles comemoram o fim da guerra e ao mesmo tempo se preparam para o que pode ser um longo confronto.