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Grupo jihadista em Moçambique mata mais de 50 jovens em ataque no interior

Autodenominado al-Shabab, grupo atua há dois anos e já fez mais de 900 vítimas
Soldados moçambicanos patrulham Mocimboa da Praia, província de Cabo Delgado Foto: ADRIEN BARBIER / AFP
Soldados moçambicanos patrulham Mocimboa da Praia, província de Cabo Delgado Foto: ADRIEN BARBIER / AFP

DACAR – Província de Cabo Delgado, Norte de Moçambique, há cerca de dez anos. Um grupo de jovens de Mocimboa da Praia faz o que pode. Alguns são pescadores, outros buscam a vida no comércio informal. Existem até os que se arriscam no tráfico ilegal de madeira. Nada vai tirá-los da pobreza . Eles se sentem frustrados, sozinhos. Sentem que são "o nada". Hoje, esses mesmos jovens, armados com rifles e facões, atacam vilas e cidades, decapitam civis, sequestram mulheres e crianças, e mataram cerca de 900 pessoas nos últimos dois anos, depois de se tornarem um grupo terrorista que eles chamam de al-Shabab. Entre um momento e outro, há um caminho de radicalização coberto de desprezo, repressão e negação do problema. A mesma história de Mali, Burkina Faso, Nigéria ou Somália ocorre em um canto de Moçambique.

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O maior de seus ataques conhecidos foi revelado nesta terça-feira pelas forças do governo. Membros do al-Shabab de Moçambique, que se identifica como um braço do Estado Islâmico da África Central, mataram 52  jovens da cidade de Xitaxi, no Norte do país, em um episódio no início de abril.

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— Os jihadistas executaram civis porque se recusaram a se juntar a eles — disse o porta-voz da polícia, Orlando Mudumane, de acordo com relatos da mídia local.

Nesses mesmos combates, os radicais alegaram ter abatido um helicóptero.

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No início da última década, uma seita radical e não violenta surgiu nesta área, islamizada desde o século IX.

— Eles eram jovens com vínculos indiretos com líderes espirituais de Arábia Saudita, Líbia, Sudão, Argélia e monarquias do Golfo Pérsico — explica Salvador Forquilha, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (IESE) em Maputo.

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Alguns foram estudar o Alcorão em Tanzânia, Quênia e Somália, onde entraram em contato com as ideias wahabistas. Vídeos do pregador queniano Aboud Rogo, que inspirou o grupo terrorista somali al-Shabab e que foi assassinado em 2012, lhes contaram sobre uma conspiração global contra os muçulmanos, a necessidade de retornar a um Islã mais puro, o "extremismo correto".

No início, havia 50 agitadores. No entanto, graças ao financiamento de comerciantes da Tanzânia, tráfico ilegal de madeira, rubis, carvão ou marfim, o crescente vínculo com outros grupos em Uganda ou na região dos Grandes Lagos, a comunidade começou a florescer. Eles não apenas enfrentaram os líderes religiosos locais, os "infiéis", mas ofereceram microcrédito para aqueles que nunca sonharam em ter acesso a um empréstimo. E começaram a se chamar de al-Shabab, como seus irmãos somalis.

— O grupo deu aos jovens uma sensação de segurança, apoio e comunidade, atendendo às suas necessidades emocionais. O Islã se tornou uma ferramenta para desafiar as autoridades e construir uma nova ordem social e política. Muitos se sentiam insignificantes, marginais e incapazes. Agora, com o al-Shabab, eles poderiam desafiar os mais velhos — explica Forquilha.

Não apenas em Cabo Delgado, de províncias vizinhas como Nampula, Niassa ou Zambézia, os jovens chegaram atraídos pelo brilhantismo desse discurso diferente que atacou a corrupção do Estado e da política antiga, oferecendo uma prosperidade que lhes era negada no dia a dia.

Os responsáveis pelas mesquitas foram às autoridades avisá-los do que estava acontecendo. No entanto, o governo, com a guerra civil ainda em curso, considerou que era um assunto religioso no qual não deveria intervir. Os choques com líderes religiosos e com suas próprias famílias, amigos e vizinhos foram além. Não se sabe quando eles decidiram dar o passo em direção à violência, mas o trabalho "Radicalização islâmica no Norte de Moçambique", realizado por Forquilha e pelos professores João Pereira e Saido Habibe e publicado pelo IESE, refere-se ao final de 2015 com  a construção de campos de treinamento na floresta e a chegada de combatentes estrangeiros, especialmente os tanzanianos. A semente germinou. É difícil saber, mas acredita-se que hoje eles possam ter até 2 mil milicianos.

O primeiro ataque ocorreu em 5 de outubro de 2017 em Mocimboa da Praia. Na província de Cabo Delgado, todos sabiam que era do al-Shabab, enquanto o governo de Maputo falava de uma insurgência sem rosto e sem mensagens.

— As autoridades alimentaram a ideia de que estávamos lidando com incidentes de perturbação da ordem pública, mas era uma guerra que estava começando. Eles nunca entenderam a dimensão do problema — afirma Forquilha, o diretor do IESE.

Desde então, o al-Shabab levou dezenas de cidades ao terror, causando uma retirada do Estado das áreas rurais. Muitas das armas que os terroristas possuem hoje foram roubadas de quartéis abandonados às pressas ou assaltados.

Com forte ancoragem local e também apoiado em reivindicações históricas de um grupo étnico que sempre se sentiu marginalizado, neste caso o mwani, o movimento insurgente vem ganhando capacidade operacional e mostrando uma crueldade que não para diante camponeses, mulheres ou crianças. Com 900 mortes de acordo com a ONG Acled e cerca de 150 mil pessoas deslocadas de suas casas, parece difícil minimizar o problema, mas isso ocorre. Alguns dias atrás, o comandante-chefe da polícia, Bernardino Rafael, disse que os insurgentes não controlavam nenhuma área e que eram "incursões criminais". Os pesquisadores discordam.

— Eles podem não controlar nenhuma cidade grande, mas estão em áreas rurais, cada vez mais difíceis de acessar — diz Forquilha.

O grupo agora se considera um batalhão da Província do Estado Islâmico na África Central, em um passo decisivo na batalha pela visibilidade internacional que também representa um novo marco  impulsionado pelo EI em sua expansão pelo continente africano.

Em 9 de abril, um punhado de terroristas vestidos como civis chegou a uma das ilhas do arquipélago das Quirimbas, a sete quilômetros da costa moçambicana. No dia seguinte, eles lançaram um novo ataque. Cinco pessoas morreram, uma queimada viva, outra baleada e as três últimas se afogaram depois de se atirarem ao mar em uma tentativa desesperada de escapar. O governo anunciou a contratação de mercenários sul-africanos para combater a rebelião, algo que os especialistas consideram um erro grave. Até o momento, cinco jornalistas e ativistas de direitos humanos que tentam investigar foram detidos pela polícia. O informante Ibraimo Abu Mbaruco desapareceu em 7 de abril e seu paradeiro ainda é desconhecido.

— É uma região pobre, como todo Moçambique — diz Salvador Forquilha. — Mas a verdade é que a descoberta de gás e petróleo gerou enormes expectativas nas áreas que ainda não foram atendidas.

A solução, ele acredita, deve passar pela criação de uma atmosfera de cooperação regional, especialmente com a Tanzânia, e, é claro, com o reconhecimento do problema.

Sentimento de discriminação étnica e abandono pelo Estado; fronteiras porosas; pregação de um Islã radical em um contexto de desemprego e pobreza que coexiste com grandes recursos de mineração; tráfico ilícito de armas; espiral de violência entre um grupo com fortes raízes locais e laços com o jihadismo internacional e um governo anunciando soluções militares. A história se repete.