Mundo Guerra na Ucrânia

Invasão marca novo passo de Putin para reescrever a História da Ucrânia

Negação da existência de uma nação ucraniana sugere ambição de reconstruir uma "Grande Rússia"
Veículo militar destruído em estrada nos arredores de Kharkiv. A placa diz "Vamos proteger o futuro: Ucrânia-Otan-Europa" Foto: MAKSIM LEVIN / REUTERS
Veículo militar destruído em estrada nos arredores de Kharkiv. A placa diz "Vamos proteger o futuro: Ucrânia-Otan-Europa" Foto: MAKSIM LEVIN / REUTERS

Em meados de julho do ano passado, quando a guerra na Ucrânia já começava a se desenhar com as declarações de Vladimir Putin sobre sua objeção à entrada do país na Otan, o presidente russo publicou um longo artigo — cerca de 5,3 mil palavras — detalhando sua visão histórica sobre os laços com Kiev.

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Ali, expôs argumentos como uma suposta inexistência de uma nação ucraniana antes da criação da União Soviética, em 1922, criticou as lideranças soviéticas por “darem” territórios russos à então república, e acusou as autoridades locais de forçarem a população de origem russa a falar seu idioma — alegações questionáveis sob um ponto de vista não alinhado ao Kremlin.

“É evidente que as autoridades russas estão apertando sua narrativa. Por um lado, isso pode sugerir que o Kremlin se sente frustrado com seu impacto limitado sobre a política ucraniana. Por outro, mostra que planos foram feitos para aumentar a desestabilização da Ucrânia nos próximos meses”, escreveu, naquele mesmo mês de julho de 2021, Maria Domanska, pesquisadora sênior no Centro de Estudos Orientais de Varsóvia.

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Putin apontava para os laços históricos de russos e ucranianos, que compartilham raízes fincadas no século IX, mas dizia que a formação de um Estado ucraniano hostil a Moscou seria “comparável ao uso de armas de destruição em massa contra nós”.

Cerca de sete meses depois, Putin fez um raivoso discurso com alegações similares: agora, tinha quase 200 mil militares na fronteira do país vizinho e, na mesma fala, reconheceu duas regiões separatistas no Leste ucraniano , rasgando novamente os acordos de Belovezha, de 1991, que, dentre outros pontos, reconheciam a inviolabilidade das fronteiras das ex-repúblicas soviéticas.

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O russo dava ali um passo crucial em um objetivo que se mostrava evidente antes mesmo da crise: reescrever a própria História do antigo bloco soviético. A começar por deslegitimar a soberania da Ucrânia, para ele, um Estado “artificial” construído “às custas da Rússia”.

— De certa forma ele está certo sobre a Ucrânia, ela é um Estado “construído” ou artificial, mas a Rússia também é um Estado criado dessa forma, assim como a Alemanha, a França e essencialmente todas as nações — afirmou ao GLOBO Oxana Shevel, professora associada de Ciências Políticas na Universidade Tufts. — Sobre o caso específico da Ucrânia, ele parece estar emocionalmente engajado no tema, e isso, infelizmente, o leva a adotar certas posturas sobre o país que moldaram suas políticas atuais.

Revoluções

Ao longo de seus mais de 22 anos à frente do Kremlin, quatro deles como primeiro-ministro, Putin jamais escondeu o descontentamento com a forma como desmoronou a União Soviética, em 1991, um evento chamado por ele, em 2005, de “a grande tragédia geopolítica do século XX”.

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Nesse contexto, especialmente pelas raízes compartilhadas, Putin vê a Ucrânia como um país legitimamente dentro de sua esfera de influência — ao apontar, em seu artigo de julho de 2021, para a “divisão artificial entre russos e ucranianos”, indiretamente dizia que o Estado vizinho fazia parte de uma “Grande Rússia”, e não aceitaria sua inclinação para o Ocidente.

Um evento crucial foi a eleição presidencial ucraniana de 2004, quando o Kremlin apostou em Viktor Yanukovych , aliado de Moscou — as denúncias de fraude foram o estopim para a chamada Revolução Laranja, que levou a uma nova votação, agora vencida pelo candidato pró-Ocidente, Viktor Yushchenko, que chegou a ser envenenado durante a campanha. O Kremlin foi acusado pelo incidente, mas negou.

“Nos primeiros quatro anos de sua Presidência (2000-2004), Putin buscou expandir a cooperação com o Ocidente, ao mesmo tempo em que tentava recolocar a Rússia entre as potências globais. A Revolução Laranja pôs fim a essa era”, escreveu, em 2020, Peter Dickson, editor do site UkraineAlert, ligado ao centro de estudos Atlantic Council. “No período pós-revolução, a Rússia adotou um caminho nacionalista na política interna, se tornando mais agressiva no cenáro global.”

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A candidatura ucraniana à Otan, oficializada em 2008, incrementou o que o Kremlin já percebia como a intrusão do Ocidente em sua “área de influência” — quatro anos depois, o início do processo do Acordo de Associação com a União Europeia acendeu um sinal de alerta máximo no Kremlin, que começou a pressionar o então presidente Viktor Yanukovych, seu aliado, a abandonar o plano, o que ele acabou fazendo em 2013.

O resultado foi a maior revolução popular no país desde sua independência, que culminou com a queda e a fuga de Yanukovych e a uma nova linha narrativa de Putin sobre o que via como o “lado correto” da História.

— O perigo apresentado [a Putin] na Euromaidan foi a demonstração de uma mobilização que levou à derrubada de um regime autocrático. Então isso poderia servir como um precedente, e surgiu como uma grande ameaça, ao menos na cabeça de Putin, ao modelo de ordem política que ele estabeleceu na Rússia — afirmou Oxana Shevel.

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Demonização

Com ações práticas, Putin agiu para infiltrar tropas e incentivar um plebiscito para que a Península da Crimeia fosse anexada à Federação Russa, em março de 2014. Ao mesmo tempo, apoiou forças separatistas no conflito no Leste do país, que já deixou 15 mil mortos e está no centro da atual guerra. Ele ainda intensificou sua demonização da Ucrânia, colocando o país como um fantoche do Ocidente, e apontando para elementos “desestabilizadores” em Kiev.

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Velhas alegações relacionadas à atuação de grupos de extrema direita em solo ucraniano foram alçadas, mais recentemente, a um patamar mais elevado: segundo o Kremlin, o governo de Volodymyr Zelensky, um judeu, estava tomado por nazistas — o país, de fato, tem um problema com grupos de extrema direita, mas eles têm pouca influência sobre os rumos políticos e não têm representação parlamentar.

— A Rússia fundamentalmente não entende a Ucrânia e sua natureza. A Rússia vem tentando provar que a Ucrânia é um tipo de Estado falido, que a Ucrânia não tem soberania, história, língua, religião. É uma realidade separada — afirmou, ao Guardian, o ex-chanceler ucraniano, Pavlo Klimkin.

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Agora, com uma guerra que vai trazer elevados custos militares, econômicos, políticos e, acima de tudo, humanos aos russos, resta saber se a população vai acompanhar essa linha de raciocínio oficial.

— Ele vai tentar substituir o governo ucraniano com um regime fantoche, mas o que isso trará de bom para ele? Essa é uma guerra extremamente impopular na Rússia, e Moscou não pode manter uma ocupação longa. Ele está diante de sanções sem precedentes e do isolamento internacional — afirmou ao GLOBO o historiador e acadêmico russo Sergey Radchenko. — Em resumo, Putin cometeu um grande engano. Sua política externa é uma série de enganos acompanhados por crimes, e é por isso que nos encontramos aqui.

Para Radchenko, os impactos da guerra vão levar a um aumento da repressão pelo governo, mas, no final das contas, a definição do futuro caberá não a Putin, mas aos próprios russos.

— A longo prazo, é a população que precisará se levantar contra Putin e derrubar sua tirania brutal.