Mundo

Julgamento de separatistas reacende tensões na Catalunha

Audiência terá partido de extrema direita no papel de acusador popular
Líderes catalães na Suprema Corte em Madri, no primeiro dia do julgamento Foto: REUTERS
Líderes catalães na Suprema Corte em Madri, no primeiro dia do julgamento Foto: REUTERS

BARCELONA E MADRI — Doze políticos catalães começaram a ser julgados nesta terça-feira no Supremo Tribunal espanhol em Madri por seu papel na fracassada tentativa de declarar a independência da Catalunha em 2017. O julgamento volta a atrair atenções para a maior crise política na Espanha em décadas, e pode mais uma vez inflamar tensões no país.

O julgamento decidirá se os líderes nacionalistas responsáveis pela realização de um referendo considerado ilegal por Madri e, consequentemente, pela declaração unilateral de independência ficarão presos. A Promotoria pede penas de prisão de até 25 anos sob a acusação de rebelião e uso indevido de fundos públicos. Em jogo estão a estabilidade da Espanha, o futuro do movimento de independência da Catalunha e a imagem da região e do governo central no exterior.

— É o julgamento mais importante que tivemos na democracia — afirmou o presidente do Supremo Tribunal, Carlos Lesmes, a jornalistas no início do mês, referindo-se ao período desde o fim da ditadura de  Francisco Franco, em 1975.

Raül Romeva, um dos nove acusados presos sem fiança desde o final de 2017, enfrentando a acusação de rebelião, deixou claro sua opinião de que tudo deve terminar apenas com uma absolvição. “Uma sentença (que os condenasse à prisão) pesaria para sempre no futuro da Espanha”, disse Romeva à Reuters numa entrevista conduzida por e-mail da prisão.

Na época de sua prisão, Romeva era ministro das Relações Exteriores no governo regional da Catalunha e membro do Parlamento Europeu.

Outros acusados incluem os veteranos políticos catalães Oriol Junqueras e Carme Forcadell. Notavelmente ausente da lista está o ex-presidente catalão Carles Puigdemont, que vive em exílio autoimposto na Bélgica e não pode ser julgado na Espanha.

O destino do grupo tem sido um grito de guerra para os separatistas desde 2017, diz Federico Santi, analista da consultoria de risco político Eurasia, acrescentando que espera, como outros observadores, que o julgamento reacenda tensões.

O julgamento, que é transmitido ao vivo pela televisão local, começou por volta de 7h (horário de Brasília). O presidente do tribunal, Manuel Marchena, deu 45 minutos para cada uma das defesas dos réus apresentarem questões prévias, como reclamações e pedidos jurídicos que devem ser analisados antes do início do juízo propriamente dito.

Defesas denunciam violação de direitos

Advogado de Oriol Junqueras e Raül Romeva, Andreu Van den Eynde usou grande parte do tempo para denunciar violações de direitos fundamentais contra seus clientes, como os de intimidade, inviolabilidade do domicílio e direito de reunião e manifestação. Para ele, os acusados têm direito de buscar a independência da Catalunha.

— Isso (a autodeterminação) é sinônimo de paz, não de guerra — ressaltou Van den Eynde, que acusou o tribunal supremo de "banalizar a liberdade" ao determinar as prisões provisórias dos acusados.

Já Jorge Pina, que defende Jordi Turull, Josep Rull e Jordi Sànchez, pôs em dúvida a imparcialidade de alguns magistrados.

— Ajam como juízes e não como salvadores da pátria — apelou.

Os protestos pela independência se acalmaram nos últimos meses, mas grupos separatistas convocaram uma série de manifestações na Catalunha e em Madri para coincidir com a data do julgamento. Entre as muitas testemunhas estará o conservador Mariano Rajoy, primeiro-ministro na época da declaração de independência.

Lluis Orriols, professor de Ciência Política da Universidade Carlos III, em Madri, acha que o julgamento vai revigorar o debate separatista antes das eleições locais e regionais do final de maio.

— A questão catalã está ativando um confronto nacionalista e identitário não apenas na Catalunha, mas também em toda a Espanha — disse Orriols.

A última vez que um julgamento por rebelião foi realizado na Espanha foi em 1982, após uma tentativa fracassada de golpe militar. Seu líder, considerado culpado por um tribunal militar, foi condenado a 30 anos de prisão.

O julgamento começa no momento em que o governo socialista enfrenta uma importante votação sobre o Orçamento de 2019 na quarta-feira. A rejeição da proposta orçamentária pode levar a um pleito parlamentar antecipado este ano.

Sánchez depende de partidos menores e, em particular, dos nacionalistas catalães para aprovar o Orçamento. Eles disseram que bloqueariam o projeto, citando sua insatisfação com a política de Sánchez em relação à região, apesar de seus esforços de diálogo.

“A política faz estranhos companheiros de cama. Os independentistas votarão contra bons orçamentos sociais para a Catalunha e a direita contra bons orçamentos sociais para a Espanha. Será que eles vivem melhor no confronto do que nas soluções?”, perguntou Sánchez no Twitter.

Alterações ao Orçamento são votadas juntas. Portanto, de forma simbólica, independentistas e direitistas estarão do mesmo lado na quarta-feira, caso consigam derrubar a proposta para o Orçamento. O Executivo ainda acredita que, no último momento, separatistas possam mudar de ideia.

Vitrine para o Vox

Graças a uma particularidade do sistema penal espanhol, o partido de extrema direita Vox poderá atuar como acusador no julgamento dos separatistas, uma situação desconfortável para o governo e rejeitada imediatamente pelos acusados. O advogado Javier Ortega Smith, secretário-geral do partido, terá o poder de interrogar réus e testemunhas.

“A justiça espanhola está dando apoio a uma campanha da extrema direita”, denunciou o principal acusado, o ex-vice-presidente catalão Oriol Junqueras. “Isso é impossível de acontecer em países como Holanda, Bélgica, Alemanha ou Dinamarca.”

O Vox, fundado em 2013, usou seu papel de acusação popular durante a fase experimental do julgamento para ganhar notoriedade. O partido sistematicamente compara os separatistas catalães, que afirmam ter realizado um processo pacífico, aos membros da organização armada basca ETA, que deixou mais de 800 mortos.

Depois de obter apenas 0,2% dos votos nas eleições legislativas de 2016, o Vox abalou o cenário político em dezembro ao entrar pela primeira vez em um parlamento regional, na Andaluzia, com 11% dos votos, enquanto se prepara para entrar, em maio, no Parlamento Europeu.

Na Ordem dos Advogados de Madrid, o criminalista Ruben Martin de Pablos recorda que a acusação popular foi reconhecida em todas as constituições espanholas durante 200 anos e que outros partidos a usaram no passado.

— Foi bastante útil para descobrir muitos problemas de corrupção — diz o advogado. — Ou para levar adiante o caso de Pinochet, que levou à prisão em 1998 do ex-ditador chileno.

Mas é verdade também que um novo partido “pode usar essa ferramenta legal para se tornar conhecido e logicamente é uma vitrine espetacular e gratuita”, admite o advogado:

— A lei permite. Nada pode ser feito. Podemos criticá-la, e podemos regular a lei no futuro.

Para o porta-voz do sindicato Juízes pela Democracia, Ignácio González Vega, a presença do Vox “desnaturaliza a figura da acusação popular porque a utiliza com fins de propaganda”. O Vox pediu, por exemplo, 74 anos de prisão para Junqueras, enquanto o Ministério Público pede 25 anos e advogados do Estado, 12.

Ortega Smith, que não respondeu aos pedidos de comentários da AFP, comemorou quando, em março de 2018, o juiz investigador decidiu manter em detenção um político catalão, conforme solicitado pelo Vox, apesar do fato de que a promotoria pedia sua libertação.

Em qualquer caso, González Vega não prevê “consequências indesejadas”:

— Será um tribunal independente e imparcial que ditará a sentença.

No julgamento, o presidente do tribunal pode interromper o advogado de Vox caso ele queria “usar o palco do julgamento para defender sua própria ideologia política”, disse o presidente do Supremo Tribunal, Carlos Lesmes.

Por sua vez, o principal funcionário do ministério acredita que “os partidos políticos devem ser excluídos da acusação popular de qualquer maneira”, enquanto outros alegam que tal impedimento seria “absolutamente inútil”, já que representantes de partidos poderiam se qualificar para a função individualmente.