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Marine Le Pen ameaça Macron na eleição deste domingo ao explorar preocupação com queda do poder aquisitivo

Previsão de abstenção alta e fragilização da 'frente republicana' contra extrema direita também jogam contra favoritismo do presidente francês
Comício tardio: diante de cartazes dos candidatos, eleitores esperam chegada de Macron a comício em Spezet; ocupado com guerra, ele atrasou campanha em votação na qual poder aquisitivo é a maior preocupação Foto: STEPHANE MAHE / REUTERS/5-4-2022
Comício tardio: diante de cartazes dos candidatos, eleitores esperam chegada de Macron a comício em Spezet; ocupado com guerra, ele atrasou campanha em votação na qual poder aquisitivo é a maior preocupação Foto: STEPHANE MAHE / REUTERS/5-4-2022

PARIS — A França começa a eleger a partir deste domingo o ocupante do Palácio do Eliseu pelos próximos cinco anos. O favoritismo inicial do presidente Emmanuel Macron, candidato à reeleição, derreteu nos últimos dias, segundo as pesquisas, ameaçado pela ascensão da candidata de extrema direita Marine Le Pen. Em uma campanha morna, abafada pela pandemia da Covid-19 e a guerra na Ucrânia, boa parte dos 48,7 milhões de eleitores inscritos poderá abdicar do voto, com previsão de um forte índice de abstenção. A nova dinâmica surgida na reta final para o pleito, no entanto, alimenta incertezas em relação aos resultados e também à mobilização do eleitorado.

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As últimas pesquisam apontam Macron e Le Pen em empate técnico nos dois turnos que decidirão a eleição, o segundo em 24 de abril. Macron, ausente da campanha e onipresente no front diplomático do conflito ucraniano como atual presidente da União Europeia, liderava de forma relativamente confortável o embate eleitoral em todos os cenários projetados pelas pesquisas. Mas sua vantagem se viu reduzida às vésperas do primeiro turno com o avanço de Le Pen, da Reunião Nacional (RN).

Em terceiro lugar, também em um ritmo crescente de intenção de votos, aparece Jean-Luc Mélenchon, do partido de esquerda radical França Insubmissa (FI), impulsionado por uma campanha do voto útil esquerdista. Mais atrás, aparentemente sem chances de prosseguir na disputa, estão praticamente empatados o ultradireitista Éric Zemmour e a candidata conservadora Valérie Pécresse, do partido Os Republicanos. Amargam posições no fim da fila três candidatos da esquerda: o ecologista Yannick Jadot, o comunista Fabien Roussel e a socialista Anne Hidalgo, prefeita de Paris.

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Para Jean-Yves Dormagen, cientista político da Universidade de Montpellier, Macron se beneficiou em um primeiro momento de sua atuação para tentar evitar o ataque russo à Ucrânia e, depois, para unir os europeus contra o regime de Vladimir Putin.

— Isso o fez progredir nas intenções de voto junto à direita popular. Ele passou a recuar ao se posicionar pelo aumento da idade de aposentadoria [de 62 para 65 anos], registrando uma queda junto ao eleitorado de esquerda mais ligado às questões sociais. Mas o risco para ele é a ideia geral de que a eleição até há pouco já estava ganha. É recorrente que isso gera desmobilização.

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Acuado, Macron dedicou os últimos dias de campanha a uma operação de sedução dos eleitores de esquerda, acumulando frases de efeito em torno da “solidariedade” e do “humanismo” e criticando as desigualdades. “Quando se caminha, é preciso duas pernas: uma à esquerda e outra à direita”, lançou o candidato em visita à cidade de Dijon. Seus críticos replicam dizendo que ele dá dois passos com a perna direita e um com a esquerda.

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Segundo as pesquisas, a queda do poder aquisitivo é a maior preocupação dos franceses atualmente, bem à frente da segurança, da imigração e das desigualdades sociais. Marine Le Pen saiu à frente dos demais candidatos e nas últimas semanas concentrou sua campanha neste tema, o que na opinião dos analistas impulsionou seu crescimento. Além disso, sua imagem de “presidenciável”, como alguém capaz de dirigir o país, bastante frágil na eleição de 2017, melhorou nesta campanha.

O papel de Zemmour

De acordo com um estudo da Fundação Jean-Jaurès, embora hoje não se apresente mais como candidata “antissistema”, mas sim da “unidade”, seu programa permanece radical em temas caros à ultradireita, como imigração e questões de sociedade. Para Pascal Perrineau, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, Le Pen se mantém na extrema direita, mas ao mesmo tempo investiu no marketing político para se tornar palatável a um público mais amplo, em um processo de “desdemonização”.

— Seu partido é herdeiro da direita radical, mas não é mais a extrema direita neofascista, como se diz que é o discurso de Bolsonaro no Brasil. Marine Le Pen não prega golpe de Estado nem recurso ao Exército. Ela diz que vai respeitar o resultado das eleições e defende o pluripartidarismo. É uma extrema direita que mudou.

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Há um consenso de que o fenômeno Zemmour, inspirado na mais antiga tradição xenófoba e ultraconservadora francesa, “normalizou”, na comparação, a candidatura de Le Pen. Para Perrineau, a candidata da RN representa a direita do nacional-populismo, fortemente enraizada na questão da identidade nacional, diferentemente de Zemour, que encarnaria uma extrema direita ancorada em uma nostalgia ultrarreacionária:

— Há uma clivagem hoje entre aqueles que reivindicam uma sociedade politicamente aberta, inserida na economia global e pró-Europa, que são os partidários de Macron, e os que acreditam que a globalização foi longe demais e é necessária uma recentragem nacional, os eleitores de Le Pen. É a mesma divisão que tivemos na França nos referendos sobre a União Europeia, em 1992 e 2005. Já Zemmour é o porta-voz extremista das questões sobre a imigração e o Islã, que viram tombar seus tabus.

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A eleição de 2017 já havia sido marcada por um forte índice de abstenção (22,2%) e o pleito deste domingo corre o risco de bater o recorde histórico de 2002 (28,4%).

— É surpreendente dizer que votaremos neste domingo, parece que a campanha nunca começou — confessa Dormagen. — Com a crise da Covid-19, durante dois anos se falou pouco de política, e hoje há a guerra na Ucrânia, que oculta a eleição. As temáticas do pleito não geram audiência. O canal TF1, inclusive, programou o filme “Os visitantes” na noite eleitoral, o que revela o fraco interesse. E há o fato de que Macron vinha sendo percebido como vencendo facilmente. Vejo o país mais farto e cansado do que em cólera. O sentimento é de fastio e de indiferença.

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Na opinião do analista Claude Pennetier, o abstencionismo também é creditado a uma “fratura da juventude”, inquieta com o seu futuro, sem se sentir representada no discurso político atual.

— Vemos esta degradação a cada eleição. É preciso evoluir a forma de escrutínio, com propostas novas. Mas não penso que será Macron a fazê-lo, caso reeleito. Ele não tem interesse em tornar o voto mais atraente, aprovar eleições proporcionais ou o reconhecimento do voto em branco.

Frente republicana frágil

A chamada “frente republicana”, aliança das forças democráticas para barrar a extrema direita, tem se mostrada cada vez mais frágil a cada pleito. Se chegar ao segundo turno contra Le Pen, Macron não poderá contar com a mesma adesão recebida em 2017. Mélenchon e Pécresse já anunciaram que não pedirão votos de seus eleitores contra a candidata extremista. E existe o risco, inclusive, de uma frente anti-Macron, desgastado após cinco anos de governo.

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Para Dormagen, o risco é ainda maior porque, hoje, grande parte dos franceses não veem mais Marine Le Pen como uma ameaça.

— Em 2002 [na disputa entre Jacques Chirac e Jean-Marie Le Pen], todo mundo tinha medo da extrema direita, embora ela pesasse pouco, cerca de 18%. Não havia um perigo, mas a mobilização antifascista foi muito forte, com grande emoção. Hoje, é o inverso. Além disso, a esquerda tradicional detesta Macron, e Le Pen conseguiu impor uma imagem mais simpática e menos divisora. Há os os ingredientes para que, se Macron ganhar, sua vitória seja menos ampla do que em 2017.