Mundo América Latina

Massacres e execuções sumárias foram cometidos durante crise política na Bolívia em 2019, concluem peritos

Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos cita milhares de vítimas e acusa principalmente polícia e militares a mando de Jeanine Añez, sem excluir crimes cometidos por apoiadores de Evo Morales
Policiais e soldados das Forças Armadas em El Alto, cidade de população indígena onde ocorreu o massacre de Senkata Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP 13-11-19
Policiais e soldados das Forças Armadas em El Alto, cidade de população indígena onde ocorreu o massacre de Senkata Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP 13-11-19

LA PAZ — O relatório do Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (GIEI-Bolívia) concluiu que houve gravíssimas violações dos direitos humanos na crise política boliviana de 2019, incluindo "execuções sumárias", "massacres" , “racismo”, “tortura” e “agressões sexuais”.

O estudo concluiu que 38 pessoas morreram e muitas outras foram feridas, assediadas sexualmente, sequestradas, agredidas, torturadas, discriminadas racialmente, detidas indevidamente, processadas sem o devido processo legal e outros abusos. As vítimas das violações chegam às milhares, e o grupo de peritos recomenda a realização de um censo para identificá-las.

A responsabilidade geral recai sobre o Estado boliviano e, conforme o caso, sobre um entre dois governos sucessivos: o de Evo Morales, considerado responsável por ocorrências desde as eleições de 20 de outubro de 2019 até sua renúncia em 10 de novembro do mesmo ano, e o de Jeanine Áñez, desde sua chegada ao poder em 12 de novembro até o final de dezembro de 2019, que é o limite do período investigado pelos especialistas.

Argentina: Bolívia acusa ex-presidente argentino Mauricio Macri de colaborar com massacres e com a destituição de Evo Morales

As principais causas das violações dos direitos humanos foram a “ação desproporcional” da Polícia e das Forças Armadas. Em segundo lugar, estão confrontos violentos de civis, separados por suas opiniões políticas a favor e contra Morales.

Os eventos mais graves foram o massacre de Sacaba, em 15 de novembro de 2019, e o massacre de Senkata, em 19 de novembro do mesmo ano. Somando ambos eventos, cerca de 20 pessoas foram mortas por armas de fogo e quase 200 foram feridas com balas de borracha.

O primeiro massacre ocorreu quando as forças conjuntas de policiais e de soldados do Exército destacadas pelo governo de Áñez impediram uma coluna de manifestantes vinda do Chapare, área de produção de coca e reduto eleitoral de Evo Morales, de chegar à cidade de Cochabamba.

As autoridades da época argumentaram que os manifestantes atiraram contra a polícia e os militares. O GIEI-Bolívia “não encontrou evidências de que os manifestantes usaram armas de fogo ou ameaçaram a vida de outros manifestantes, da polícia ou das Forças Armadas presentes. Não houve relatos de ferimentos graves em qualquer membro das forças de segurança”.

O massacre de Senkata ocorreu do lado de fora da usina de armazenamento de gás e gasolina de El Alto, cidade próxima a La Paz de população esmagadoramente indígena. Os manifestantes derrubaram um muro e queimaram lixo para expressar sua indignação, após, horas antes, caminhões-tanque escoltados pela polícia furarem um bloqueio feito ao redor da usina para levarem combustível para a cidade vizinha de La Paz.

O governo de Áñez alegou que manifestantes tentaram explodir a usina "com dinamite", alegação que o relatório desmente. “As estruturas sensíveis da fábrica não foram ameaçadas por vandalismo nem pelos protestos. Na única ocorrência de alguma gravidade, ocorrida no extremo sul da usina — na área de gerenciamento de válvulas para redução da pressão do sistema de distribuição de gás natural — o uso proporcional da força se mostrou suficiente para prevenir riscos específicos ou danos aos serviços”, afirma o texto. E conclui que “ocorreu um massacre em Senkata (...) Embora as Forças Armadas e a Polícia não tenham admitido o uso de armas letais, as evidências recolhidas indicam que os disparos com armas de fogo partiram das suas tropas”.

Relembre: Justiça da Bolívia ordena prisão de Jeanine Áñez, ex-presidente interina, e da cúpula de seu governo

Se esses trechos do relatório favorecem a interpretação dos fatos defendida pelo Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Morales, o GIEI-Bolívia também estabelece que duas pessoas do movimento que protestava contra o então presidente foram mortas a tiros no dia 30 de outubro em Montero, uma cidade na parte oriental do país. Os responsáveis eram provavelmente militantes do MAS, dizem os peritos da CIDH.

O relatório também confirma que, às vésperas da derrubada de Morales, vários ônibus de manifestantes contra ele que se dirigiam a La Paz vindos do sul do país foram detidos à força. Alguns desses viajantes foram espancados e até agredidos sexualmente por apoiadores de Morales que fechavam a estrada, segundo a investigação. Outros — cujas identidades não foram divulgadas — foram baleados com armas de longa distância. “Esses eventos foram resultado da polarização estimulada por agentes políticos e pelo próprio governo, que contribuiu para a disseminação de violência entre os civis e de violações dos direitos humanos”, diz o relatório. Até o momento, não houve nenhuma investigação séria por parte do Estado boliviano dos crimes cometidos. “O Estado também é responsável pela impunidade que ainda existe”, acrescenta o GIEI-Bolívia.

A CIDH já considerava os episódios de Sacaba e de Senkata massacres.