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Mélenchon, que quase tirou Le Pen do 2º turno contra Macron, complica ainda mais reorganização da esquerda na França

Partidos moderados não podem mais ignorar uma formação que se apresenta como a única esquerda capaz de enfrentar a extrema direita ou o macronismo. Mas a desconfiança é profunda
Jean-Luc Melenchon, líder do partido de oposição de extrema esquerda nas eleições presidenciais francesas de 2022, discursa durante uma marcha na Place de la Republique em Paris Foto: SARAH MEYSSONNIER / REUTERS
Jean-Luc Melenchon, líder do partido de oposição de extrema esquerda nas eleições presidenciais francesas de 2022, discursa durante uma marcha na Place de la Republique em Paris Foto: SARAH MEYSSONNIER / REUTERS

PARIS — A festa nas imediações do Circo de Inverno em Paris, local escolhido por Jean-Luc Mélenchon, candidato de esquerda mais bem-sucedido nas eleições de domingo, para acompanhar os resultados do primeiro turno , durou mais do que o esperado. Pela terceira vez em três eleições presidenciais, o líder da França Insubmissa não conseguiu chegar ao segundo turno — apesar disso, nunca antes uma derrota foi comemorada com tanta alegria.

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Também, nunca antes, a esquerda populista esteve tão perto de chegar ao segundo turno  — por algumas horas até parecia que Mélenchon alcançaria a candidata de extrema direita, Marine Le Pen . E, sobretudo, nunca antes havia deixado tão para trás, praticamente sem relevância, os demais partidos progressistas com os quais nos últimos cinco anos disputou a liderança da oposição de esquerda ao presidente Emmanuel Macron.

Deveria ser um cálculo simples: Mélenchon obteve 21,9% dos votos, contra 1,7% da candidata socialista Anne Hidalgo, 2,3% do comunista Fabien Roussel e 4,5% do ambientalista Yannick Jadot. Assim, o líder da França Insubmissa aparece como a referência incontornável para reconfigurar o campo abatido da esquerda francesa, que pela segunda vez consecutiva não conseguiu chegar à final presidencial e que, pelo caminho, deixou os antigos partidos de referência, especialmente o Socialista, como um campo queimado.

Mas nada é fácil em uma esquerda em que o único partido que deteve o poder neste século, o Socialista, está à beira da extinção e em que a outra esperança, os ecologistas, também confirmaram, mais uma vez, sua incapacidade de romper um teto de votos. Ambas as formações, por não atingirem 5% dos votos, não conseguirão nem sequer recuperar o que foi gasto na campanha. Os ecologistas já reconheceram que isso vai ser um problema, como é o caso dos comunistas de Fabien Roussel e, no campo da direita, dos Republicanos.

Se só fosse um problema de egos — quem deve liderar a esquerda? —, como se discutiu ao longo dos últimos cinco anos nas várias e frustradas tentativas de recomposição da esquerda, a força eleitoral que o mélenchonismo mostrou agora deveria resolver a questão.

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Mas as diferenças vão além dos números, principalmente pelo fato de Mélenchon ter assegurado que esta era sua última campanha, já que, na próxima eleição presidencial, completaria 75 anos. Existem vários candidatos para sucedê-lo, mas nenhum pode ser considerado um nome seguro e também nenhum tem o carisma desse político experiente, um senador socialista por décadas antes de iniciar sua própria jornada política mais à esquerda.

Há também uma profunda desconfiança. Vários representantes graduados da França Insubmissa acusaram no domingo os líderes socialistas, ambientalistas e comunistas (o PCF, que em 2017 concorreu com Mélenchon, apresentou seu próprio candidato agora) de não querer aceitar a liderança de Mélenchon. Mas outros também censuram o líder por não ter cedido (nem mesmo participou pessoalmente das reuniões do ano passado para tentar encontrar uma candidatura comum) ou por não ter feito verdadeiros esforços unificadores depois de ter sido a primeira força da esquerda, em 2017.

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— Mélenchon ficou para trás em 2017. Ele poderia ter sido o François Mitterrand da década de 2020. Ele preferiu descartar todos — disse ao Journal du Dimanche o senador socialista Jean-Marc Todeschini no domingo.

Há cinco anos, o ambientalista Jadot também assegurou que "Mélenchon tem o mesmo objetivo que Macron: matar tudo o que existe à esquerda dele".

Questionamento da Otan

Acima de tudo, há um problema fundamental, de princípios, que parece mais difícil de superar, especialmente em matéria de política externa.

O questionamento da França Insubmissa — o partido mais próximo do Podemos da Espanha — à União Europeia, cujos tratados quer revisar, bem como à Otan, da qual propõe a saída mesmo após o início da guerra na Ucrânia, são sinais vermelhos para outras formações mais moderadas de esquerda, especialmente alguns socialistas e ambientalistas que defendem fortemente o europeísmo.

Enquanto Hidalgo e Jadot também pediram imediatamente votos para Macron parar Le Pen, Mélenchon repetiu até três vezes em seu discurso que “você não deve dar um único voto” à extrema direita. Mas ele não pediu voto para o presidente.

No restaurante parisiense onde o Partido Socialista (PS) ouviu o que muitos consideram sua sentença de morte, os militantes rapidamente fizeram um chamado para reconstruir a esquerda. Primeira fase: as eleições legislativas em junho, onde procurarão unir forças para não permanecerem inoperantes por mais cinco anos diante de uma esmagadora maioria macronista.

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Os contatos já haviam começado, asseguraram vários altos funcionários socialistas, com os comunistas e ambientalistas com os quais o PS conseguiu resultados importantes nas eleições regionais de 2021; isso mostra, dizem, que a aliança da esquerda é possível e pode governar.

O que faltava na lista de todos os responsáveis era mencionar a França Insubmissa. Também não é mencionado na declaração conjunta o que o primeiro secretário do PS, Olivier Faure, e figuras-chave no futuro do socialismo (ou como quer que seja chamado após a necessária refundação após este último desastre), como Carole Delga ou Johanna Rolland, emitiram após a derrota de Hidalgo pedindo uma "união da esquerda e ambientalistas".

Nem todos parecem concordar. O ex-primeiro-secretário do PS Jean-Christophe Cambadélis apelou nesta segunda-feira aos seus colegas para "acordarem" e deixarem de pensar nas eleições legislativas como "uma vingança contra a França Insubmissa".

A deputada Clémentine Autin, entretanto, relembrou também nesta segunda-feira os "longos meses durante os quais os outros candidatos [de esquerda] passaram muito tempo a falar mal de Mélenchon, mesmo com mentiras". A reconciliação ainda parece difícil.