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Mesmo com popularidade alta, Fernández é assombrado por recessão econômica e 'guerra de varandas'

Risco de calote devido à crise causada por novo coronavírus deixa mal-estar no país; falta de medidas voltadas para a classe média gera embate entre apoiadores e opositores do governo
Presidente da Argentina, Alberto Fernández Foto: AFP
Presidente da Argentina, Alberto Fernández Foto: AFP

RIO — As pesquisas variam, mas o percentual de apoio ao presidente da Argentina , Alberto Fernández , e a seu governo pela maneira como estão enfrentando a pandemia de coronavírus oscila entre 50% e 80%. No entanto, nas últimas semanas surgiram algumas nuvens pretas no horizonte do chefe de Estado, relacionadas ao impacto econômico que a crise causada pela Covid-19 terá em setores de classe média, que não estão recebendo qualquer tipo de ajuda do Estado. No que foi chamado por alguns de “guerra de varandas”, em alguns bairros portenhos como Palermo, apoiadores incondicionais do presidente brigaram com críticos que voltaram a pegar as panelas para protestar contra o governo, por exemplo, pela negativa de Fernández em rebaixar salários de funcionários e cargos políticos.

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A Argentina foi um dos primeiros países da região a aplicar uma quarentena total, que a Casa Rosada acaba de prorrogar até 26 de abril. A medida conseguiu conter a expansão do coronavírus, que até o momento contagiou 2.605 pessoas e provocou 115 mortes.

Nesse aspecto, o respaldo a Fernández é quase unânime. Porém, os temores pelo aprofundamento de uma recessão que se arrasta há vários anos e convive com um risco de calote da dívida pública estão aumentando e criando um clima de mal-estar social.

A carta pública de uma médica que questionou o presidente por sua posição sobre os salários de funcionários do governo e parlamentares viralizou nas redes sociais, em meio aos novos panelaços. Ainda são reações minoritárias, mas analistas locais ouvidos pelo GLOBO coincidiram em afirmar que a situação econômica será cada vez mais complicada para trabalhadores informais, autônomos e para os que sofram reduções salariais e até mesmo demissões. E essa deterioração poderá afetar a popularidade do chefe de Estado.

— Hoje, estimamos que esses que protestam representam 20% da população, um setor que está preocupado e irritado com o governo. Vemos uma tendência clara de piora da situação — comentou Hugo Haime, diretor de uma das empresas de consultoria mais procuradas por políticos peronistas.

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Os argentinos vivem hoje, disse Haime, um dilema muito grande: respaldam na grande maioria dos casos a quarentena, mas querem trabalhar.

— A discussão sobre a crise econômica está se instalando — enfatizou.

O governo tomou algumas decisões pensadas para a classe média, como a suspensão de despejos em caso de não pagamento do aluguel e o congelamento das parcelas de créditos hipotecários. Os conflitos estão se multiplicando, muitos inquilinos (são 9 milhões de pessoas, num país de 41 milhões de habitantes) estão deixando de pagar e as corretoras, enlouquecendo.

— É tudo muito complexo. As pessoas dizem que não podem pagar e pronto. E é compreensível, porque para a classe média são mantidas todas as exigências em matéria de pagamentos, sem ajuda e cada vez com menos recursos — desabafou Lucia Jiménez, que trabalha numa imobiliária do bairro de Palermo.

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Os panelaços da classe média foram questionados pelo governo e seus integrantes. O embaixador da Argentina na Espanha, Ricardo Alfonsín, filho do ex-presidente Raúl  Alfonsín (1983-1989), afirmou que seu país é o único lugar do mundo onde se organizam tais protestos em meio a uma pandemia. A iniciativa foi atribuída por alguns dirigentes peronistas a Marcos Peña, ex-chefe de Gabinete do governo Mauricio Macri (2015-2019), que, ao contrário de outros aliados do ex-presidente, como o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, não expressou seu apoio a Fernández na crise.

— A questão é que, na Argentina, o governo de fato não tem recursos para socorrer a todos. A crise vai ser forte, e a classe média não tem salva-vidas — afirmou Ignácio Labaqui, professor da Universidade Católica Argentina (UCA).

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Para ele, “a pandemia deu um norte ao governo, que estava sem rumo, mas em breve as consequências econômicas da quarentena serão sentidas”.

— Ao lado de presidentes como Bolsonaro, Maduro e López Obrador, o chefe de Estado argentino aparece como o mais racional — apontou Labaqui, referindo-se aos presidentes de Brasil Venezuela e México.

Essa opinião positiva, porém, convive com um ambiente de irritação e angústia cada vez maior. Em províncias do Sul da Argentina, os pedidos de ajuda e alerta sobre uma eventual falência em massa de pequenos comércios se intensificaram. Na cidade de Esquel, província de Chubut, comerciantes empapelaram as vitrines de suas lojas com jornais para protestar pela falta de resposta das autoridades locais. Em redes sociais, cerca de 200 comerciantes afirmaram estar dispostos a cancelar suas habilitações e passar a trabalhar na informalidade.

— Em setores que tradicionalmente têm aversão ao peronismo, a indignação é maior. Mas, em geral, a classe média mais desprotegida está zangada — afirmou o analista Carlos Fara.

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Economistas como Roberto Cachanosky argumentam que 8 milhões de argentinos devem continuar pagando seus impostos para sustentar outros 20 milhões (que vivem abaixo da linha da pobreza). Sua visão é compartilhada por muitos compatriotas, que também têm questionado na mídia e nas redes a atenção dada em matéria de saúde e programas sociais a imigrantes que moram na Argentina. Esta semana, chegaram ao país 200 médicos cubanos. E Cachanosky reagiu imediatamente em sua conta no Twitter: “Não fazem quarentena, não revalidam seus diplomas... e nós todos, idiotas, trancados em casa”.

Esse discurso está penetrando com força na classe média e, nas próximas semanas, poderia representar um problema para o governo Fernández. Sua popularidade continua alta, mas começaram a aparecer pedras no caminho.