CARTUM — As Forças Armadas do Sudão prenderam nesta segunda-feira o primeiro-ministro do país, Abdallah Hamdok, e as principais autoridades civis em um golpe de Estado que põe em xeque a frágil transição democrática no país africano. Protestos foram imediatamente registrados nas ruas, com relatos de disparos, ao menos sete mortos e 140 feridos.
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De acordo com Abdel Fattah al-Burhan, general que comandou o Conselho Soberano de Transição, formado por civis e militares após a queda do ditador Omar Bashir, em 2019, os militares tomaram o controle do país e dissolveram o governo de transição. Ele afirmou também que ficarão no poder até julho de 2023, quando haveria eleições, quase um ano depois do prazo previsto originalmente, que era o final de 2022.
— Nós garantimos que o compromisso das Forças Armadas de completar a transição democrática até entregarmos [o poder] para um governo civil eleito democraticamente — afirmou al-Burhan.
Hamdok desapareceu pela manhã, pouco antes de o Ministério da Cultura e Informação, que ainda estava na mão dos civis, emitir um comunicado afirmando que o primeiro-ministro e sua mulher haviam sido sequestrados e levados para um lugar desconhecido. De acordo com o órgão, o premier estava em prisão domiciliar e foi transferido após se recusar a soltar uma nota "pró-golpe".
O ministério, que também pediu resistência popular à tomada do poder pelos militares, disse ainda que vários ministros e integrantes civis do Conselho Soberano de Transição foram detidos, mas o número exato ainda não está claro. O conselho tinha como objetivo preparar o país para as eleições.
No final da tarde, a pasta escreveu, em sua página no Facebook, que o governo de Hamdok ainda é a autoridade legítima no Sudão, e que a Constituição transitória dá apenas ao primeiro-ministro o direito de declarar estado de emergência, apontando que "as ações dos militares são um crime".
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Em Cartum, grupos da sociedade civil convocaram a população para manifestações e, de acordo com aliados do governo recém-dissolvido, dezenas de milhares de pessoas foram às ruas gritando palavras como "o povo é mais forte" e "recuar é impossível". Imagens de emissoras locais mostram pneus sendo queimados e tiros disparados contra opositores perto do quartel-general das Forças Armadas.
De acordo com um funcionário do Ministério da Saúde, ouvido por agências de notícias, sete pessoas morreram e 140 ficaram feridas em choques com as forças de segurança.
O aeroporto internacional de Cartum foi fechado, o acesso a internet foi cortado e a televisão estatal transmite músicas patrióticas. Pontes foram fechadas e jornalistas foram presos na sede de uma emissora local de rádio e TV. Os dois principais partidos políticos do país, o Umma e o Partido do Congresso Popular, que era aliado de Bashir antes de se voltar contra ele, condenaram o que chamaram de golpe e uma campanha de detenções arbitrárias.
Uma greve geral está sendo convocada pela Associação de Profissionais do Sudão, principal coalizão civil no levante contra Bashir, que governou o país de 1989 a 2019:
"A revolução é uma revolução do povo", disse o grupo, formado por médicos, engenheiros e advogados, em uma postagem no Facebook, afirmando que "poder e riqueza pertencem ao povo. Não a um golpe militar". "Fazemos um apelo para que as massas saiam e ocupem as ruas, fechem as estradas com barricadas, façam uma greve geral, não cooperem com os golpistas e usem a desobediência civil para confrontá-los."
Semanas de instabilidade
A manobra militar vem às vésperas da data prevista para que o chefe das Forças Armadas transferisse o comando do Conselho Soberano para Hamdok, em 17 de novembro, o aniversário de três anos do período de transição. O cargo é majoritariamente cerimonial, mas seria a primeira vez em mais de 30 anos que o país estaria completamente sob controle civil pela primeira vez.
Temores de um golpe permeavam Cartum desde a queda de Bashir, em 2019, mas se acentuaram nos últimos meses, tensionando ainda mais o acordo de partilha de poder. Um ponto de ebulição, contudo, veio em 21 de setembro, quando as autoridades conseguiram conter uma tentativa de golpe de aliados do ex-ditador, desencadeando a pior crise política no país desde o início do governo de transição.
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Integrantes civis do Executivo vinham alertando que o Exército almejava fomentar a instabilidade no país, semeando a discórdia em seus quadros com o fim de criar um ambiente propício para a tomada de poder. Um grupo muito próximo aos militares, mas oficialmente parte das Forças de Liberdade e Mudança, que encabeçaram os protestos que culminaram na queda de Bashir, se dividiu nas últimas semanas, formando uma aliança que poderia oferecer cobertura civil ao Exército.
As Forças de Liberdade e Mudança, por sua vez, também demandaram que o conselho militar transfira o poder novamente para um governo civil, além da libertação de todos os integrantes presos do Gabinete.
Desde o último sábado, centenas de pessoas estiveram nas ruas de Cartum para pedir que os militares tomassem o poder, em um protesto que causou controvérsia depois que imagens nas redes sociais mostraram a distribuição de dinheiro e comida. O grupo acusa o governo de não conseguir reviver uma economia precária que, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional, deverá permanecer estagnada neste ano.
Repercussão internacional
Em 2020, segundo estimativas do Banco Mundial, 17,7% da população sudanesa estava desempregada, e a inflação bate níveis históricos, com a escassez de produtos básicos. Havia, contudo, sinais de melhora nos últimos meses diante da ajuda humanitária internacional, posta em risco pelos acontecimentos mais recentes — os Estados Unidos, a União Europeia, a Liga Árabe e a ONU emitiram comunicados nas últimas horas pedindo a volta do governo de transição.
"Eu condeno o golpe militar em curso no Sudão. O primeiro-ministro Hamdok e todos os outros funcionários devem ser soltos imediatamente. Deve haver respeito completo ao estatuto constitucional para proteger a duramente conquistada transição política", escreveu o secretário-geral da ONU, António Guterres, no Twitter. "A ONU continua a apoiar o povo do Sudão."
Lideranças civis, por sua vez, também mostravam-se cada vez mais impacientes com a resistência dos militares a realizar uma reforma profunda das instituições de segurança pública, incluindo suas contas, e submetê-las ao controle civil. Também eram críticas da obstrução das Forças Armadas em questões-chave, como a investigação dos crimes cometidos pelos militares após a queda de Bashir e a cooperação com o Tribunal Penal Internacional em sua investigação sobre o genocídio em Darfur, que pode afetar alguns de seus líderes.
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Em resposta aos atos pró-militares, defensores de um governo democrático organizaram no último sábado protestos maciços por todo o país, dos quais participaram vários integrantes do governo de Hamdok. Também no último final de semana, o enviado especial dos EUA para o Chifre da África, Jeffrey Feltman, havia se reunido com autoridades militares e civis em Cartum.
Em um comunicado emitido nesta segunda, Feltman disse que Washington está "profundamente alarmada" com a situação "inaceitável" em Cartum e que qualquer mudança no governo de transição do país põe em xeque a ajuda humanitária dos EUA, neste ano estimada em US$ 377 milhões — no começo da tarde, o Departamento de Estado anunciou a suspensão da ajuda.
— O governo de transição comandado por civis deve ser restaurado imediatamente e representar a vontade do povo — disse o porta-voz do departamento, Ned Price. — Diante dos acontecimentos, os EUA estão suspendendo a ajuda.
Pouco depois, os americanos também orientaram seus cidadãos no país africano a não deixarem os lugares onde estão, diante dos relatos de que forças de segurança estariam bloqueando as ruas. (Com El País e agências internacionais)