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Na América Latina, Covid-19 é estopim para crise no já precário sistema carcerário

ONU manifesta 'profunda preocupação' com presos do continente, frequentemente detidos em centros superlotados e sem água corrente
Detentos na prisão Izalco, no noroeste de San Salvador Foto: - / AFP / 26-04-2020
Detentos na prisão Izalco, no noroeste de San Salvador Foto: - / AFP / 26-04-2020

CARACAS – A pandemia de Covid-19 vem acirrando as tensões nos sistemas carcerários da América Latina , provocando fugas em massa, motins que já deixaram mais de 80 mortes e levando diversos governos a libertar parte de seus presos. A situação é exacerbada por centros de detenção já superlotados e com condições precárias de higiene, impossibilitando que os detentos possam tomar as mais básicas medidas de proteção contra a doença.

O incidente mais letal ocorreu no fim de semana, em uma prisão em Guanare, no centro da Venezuela, onde a restrição de visitas em razão de um cordão sanitário desencadeou uma rebelião. Segundo a ONG Observatório Venezuelano de Prisões, ao menos 47 pessoas morreram e 75 ficaram feridas. Alguns jornais locais apontam que o número de mortes pode ter sido superior a 60.

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A gravidade da situação fez com que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos manifestasse, nesta terça-feira, “profunda preocupação” com as condições carcerárias do continente. Em um comunicado, Rupert Colville, porta-voz do braço da ONU chefiado por Michelle Bachelet , fez um apelo para que os Estados investiguem os incidentes “extremamente violentos” que vêm ocorrendo em centros de detenção em meio ao medo do novo coronavírus e à falta de serviços básicos.

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O primeiro sinal de alarme veio do Brasil, no dia 16 de março, por um motivo oposto: a restrição das saídas temporárias para evitar o ingresso do coronavírus nas prisões. Cerca de 1.400 presos fugiram de vários centros de detenção no interior de São Paulo. As autoridades conseguiram recapturar cerca de 600.

Desde então, semanalmente são registrados novos distúrbios na Colômbia, na Argentina, no Peru ou no México, conforme a doença se propaga entre carcereiros e encarcerados. Segundo Gustavo Fondevila, professor do Centro de Investigação e Docência Econômicas (Cide), no México, e especialista em sistemas carcerários latino-americanos, a situação é “explosiva”.

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'Como animais'

A precariedade de muitos sistemas penais da região faz com que a alimentação de vários detentos dependa das comidas levadas por seus parentes — logo, a suspensão das visitas se traduz em fome.

A Colômbia declarou emergência nas prisões no final de março, após um motim que deixou 23 mortos e 91 feridos em uma prisão em Bogotá. As autoridades associaram a rebelião a uma tentativa frustrada de fuga, mas outras versões divulgadas pela mídia a associaram ao medo que os detentos sentiam da Covid-19.

A cerca de 120 quilômetros dali, na prisão de Villavicencio, a situação "é terrível", conforme disse à AFP Angélica (nome fictício), irmã de um dos detentos. Neste centro, há 306 casos confirmados e quatro mortes por Covid-19. Cerca de 1.700 presos estão isolados, segundo as autoridades penitenciárias. Lá, os doentes não recebem atendimento médico e, para que sejam mantidos em isolamento, são trancados em suas celas. Detentos saudáveis, segundo a mulher, dormem empilhados no corredor:

– Eles [os carcereiros] os tratam como se fossem animais (...) Eles estão desesperados, aqueles que não estão infectados querem fugir. Eles temem por sua saúde, por sua vida. As pessoas estão desesperadas para sair de qualquer maneira, fazendo greve de fome.

A delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para Peru, Bolívia e Equador alertou que um surto nas prisões "pode ser devastador para sua população, principalmente em estabelecimentos superlotados, onde o nível geral de saúde já é ruim".

Em Lima, a notícia de que dois detentos morreram de Covid-19 causou tumulto na prisão de Castro, que abriga 5.500 detentos, mas tem capacidade para 1.140. Ao todo, nove presos morreram e 67 pessoas ficaram feridas, entre detentos, guardas e policiais. Desde que o primeiro caso de Covid-19 foi registrado no Peru, em 6 de março, 645 presos foram diagnosticados com a doença, dos quais 30 morreram.

Também houve distúrbios no Equador, o país da região proporcionalmente mais atingido pela pandemia. O presidente Lenín Moreno declarou estado de emergência em suas prisões e dias depois disse que havia reduzido quase 10% da superpopulação por meio da libertação.

Distanciamento social

A superlotação é um problema comum na região, embora de escalas variadas: no Chile e no Uruguai, segundo Fontevila, fica em torno de 100%. Em países da América Central, pode chegar a 350%. De acordo com o último relatório (2018) sobre a população carcerária do Instituto para Pesquisa de Políticas de Crime e Justiça (ICPR) a taxa média de presos na América do Sul é de 233 por 100.000 habitantes, enquanto na América Central chega a 316. Para referência, a taxa na Europa Ocidental é 81.

As dificuldades de cumprir as duas regras básicas contra o vírus — a higiene e o distanciamento social — representam um desafio extraordinário para os centros de detenção que, em muitos casos, têm seis ou oito pessoas vivendo sem água corrente em uma cela projetada para dois. Frente à falta de saneamento, a circulação de doenças como malária, tuberculose ou sarna é comum nesses lugares.

— Em uma prisão onde se tem 300% de ocupação, não é possível estabelecer nenhum protocolo para o coronavírus ou para qualquer outra doença contagiosa infecciosa — disse Fontevila. — Lá, o que você precisa fazer é isolar a prisão.

Medidas alternativas

Alguns países implementaram rapidamente medidas alternativas para desafogar as prisões lotadas. Após os motins, a Colômbia aprovou a libertação de cerca de 4.000 detentos que tivessem mais 40% da pena cumprida, mais de 60 anos de idade ou com "doenças catastróficas" ou deficiências.

O Senado mexicano optou por algo similar, aprovando uma lei que concede anistia a réus primários que cometeram crimes brandos sem armas de fogo, uma promessa de campanha do presidente Andrés Manuel López Obrador que recuperou o fôlego em meio à epidemia. No Brasil, cerca de 30 mil dos mais de 700 mil presos brasileiros, segundo estimativas oficiais, deixaram as prisões e foram para prisão domiciliar, seguindo recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Fondevila defende tais libertações, embora ele diga que elas são impopulares e "de alto custo político" para os governantes. O preço político da decisão foi sentido na Argentina, onde o presidente Alberto Fernández anunciou que mais de 320 dos 12 mil detidos no sistema federal seriam enviados para casa. Dos 80 mil em prisões provinciais, 286 saíram. Em resposta, setores da oposição conservadora organizaram um panelaço.

O Chile também aprovou um perdão especial devido ao coronavírus para 1.300 detentos de baixo risco. Mais de 100 deles, no entanto, rejeitaram o benefício porque não têm para onde ir ou não querem perder o emprego na prisão.