Exclusivo para Assinantes
Mundo

Nas ruas de La Paz, bolivianos sentem que vivem calma com data de validade

Um mês depois dos protestos, país permanece polarizado e população teme que início da nova campanha eleitoral, em janeiro, faça explodir novos confrontos
Foto: JORGE BERNAL / AFP
Foto: JORGE BERNAL / AFP

LA PAZ — Um mês após a renúncia do presidente Evo Morales , a sensação que se tem em La Paz é de que nada aconteceu. Nas ruas da cidade, a vida parece normal: estão lá as tradicionais vendedoras de rua, indígenas em sua maioria, os alunos voltaram a frequentar as escolas, o transporte público funciona normalmente e o trânsito segue caótico. Mas, por trás da aparente tranquilidade, os bolivianos concordam que uma bomba está prestes a explodir assim que a campanha para as novas eleições começar, provavelmente em janeiro. Na Assembleia Nacional, onde o agora opositor Movimento ao Socialismo (MAS) tem maioria, há bastante embate nas sessões, e o governo de transição trabalha na aprovação de decretos e medidas que tentam derrubar parte do que foi construído durante os quase 14 anos em que Morales esteve no poder.

— Essa aparente calma é unicamente uma resposta à saída de Evo. O determinante mais importante, que levou as pessoas às ruas, não está mais aqui — explica o cientista político Marcelo Arequipa, lembrando que essa calma tem data de validade. — O ex-presidente Carlos Mesa vai centrar sua campanha em dizer que o MAS representa Evo, e há candidaturas como a de (Luis Fernando) Camacho, que vão tentar romper com tudo que está aí, voltando a endurecer o discurso.

Decretos polêmicos

Nos muros de La Paz, a polarização que tomou conta do país durante a campanha e atingiu seu auge após o resultado da eleição de 20 de outubro — que deu a vitória a Morales em primeiro turno, mas acabou contestado — é ainda visível. “Evo ditador”, “Evo povo”, “Evo mente”, “Mesa presidente”, “Bolívia cresce, Evo continua”, e muitos outros dizeres continuam por todas as partes.

Leia mais: Whipala, a bandeira que é símbolo de união e de divisão da sociedade boliviana

— Estamos em compasso de espera. As pessoas deixaram as ruas, mas voltarão caso seja necessário — conta um taxista de origem aimará, assim como o presidente, que hoje vive em Obrajes, um dos bairros da zona sul da cidade, a mais rica, que não para de crescer.

Até o antigo reduto de Morales, El Alto — onde o boom econômico e a chegada do sistema de teleféricos, inaugurado em 2014, facilitaram a vida de milhares de moradores — está dividido. A grande maioria reconhece a importância do ex-presidente, mas uma parcela significativa acredita que Morales estava há tempo demais no poder.

— Era hora de Evo sair de cena, mesmo que por pouco tempo, para descansar e, quem sabe, voltar — diz a vendedora María, de origem aimará. — É claro que Evo nos deu voz. As pessoas não se sentavam ao nosso lado, nos xingavam na rua. Agora somos respeitados, formamos parte da sociedade. Mas muita gente estava cansada de vê-lo ali.

Veja também : Crise na Bolívia mostra a linha tênue entre golpe e revolução

Para o historiador e indigenista Pedro Portugal, foram justamente as transformações econômicas em El Alto que jogaram contra Morales.

— É irônico. É importante destacar que não houve uma política econômica específica para El Alto, como houve em Santa Cruz. Claro que resquícios desse boom econômico ajudaram alguns a enriquecer, e sem dúvida, criaram condições para diminuir a marginalização indígena. E isso fez, paradoxalmente, com que muitos se afastassem do MAS, inclusive politicamente, por estarem cansados dessa divisão — afirma. — A reação de El Alto a favor de Evo veio do setor mais violento. A grande massa quer tranquilidade. A não ser que haja algum imprevisto, isso vai durar até as eleições.

Em pouco mais de 30 dias de governo de transição, vários decretos presidenciais foram publicados — e alguns depois revogados, como o 4.078, que concedia imunidade às forças de segurança que participassem de operações “para restabelecer a ordem” . Na semana passada, uma norma sobre o financiamento estatal dos meios de comunicação causou polêmica, porque atrelava o financiamento a questões subjetivas como ética e transparência.

O governo também precisa lidar com um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que recomendou uma investigação internacional sobre as graves violações ocorridas durante os protestos em Sacaba (Cochabamba) e Senkata (El Alto), classificadas como “massacres”. Nos dois locais, 18 apoiadores do ex-presidente morreram, a maioria por disparos de armas de fogo.

Sem grande apoio popular, a presidente interina, Jeanine Añez , desconversa sobre seu interesse em participar das eleições — ela costuma dizer que “seu objetivo maior é o governo de transição”, mas nunca negou com todas as letras que será candidata.

— Não são leis, porque o governo interino tem pouca predisposição de negociar com o MAS, mas normas que não parecem de um governo de transição, principalmente nos âmbitos político e social, e indicam que Añez está mais próxima de ser candidata do que de não ser — diz Arequipa, que destaca ainda movimentos políticos do governo que tentam associar o MAS ao narcotráfico e à corrupção, e assim enfraquecer organizações populares e sindicais próximas à legenda do ex-presidente.

Desmontando Morales

A ministra da Comunicação, Rozana Lizárraga, afirma que um dos objetivos do governo de transição é “desmontar o aparato propagandístico de Evo Morales”.

— A imprensa estatal foi utilizada para a campanha de Evo. Ou seja, instituições públicas pagaram pela campanha. Queremos desmontar a máquina de corrupção e propaganda da ditadura de Evo. A cada dia que passa encontramos mais irregularidades — diz, negando que tenham a intenção de fazer grandes mudanças. — É um governo muito curto e não podemos nos comprometer a mudar a Constituição, mas queremos deixar as bases assentadas.

Veja ainda : Uma viagem ao berço político de Evo Morales na Bolívia

Por enquanto, além de Carlos Mesa , que ficou em segundo lugar na eleição de outubro e já anunciou que estará novamente na disputa, Luis Fernando Camacho, presidente do poderoso Comitê Pró-Santa Cruz, que acabou ganhando parte dos holofotes no processo que derrubou Morales, já anunciou que será candidato .

— Camacho pode aglutinar muitos eleitores que não fazem parte de sua base mais radical e extrema, mas que acreditam que ele seja a única salvaguarda para manter a tranquilidade. O ideal é que haja pluralidade, três ou quatro atores políticos importantes. Parte da população não quer mais extremos — diz Portugal.

A grande incógnita é quem do MAS irá concorrer, já que Morales está inabilitado. Alguns analistas acreditam que a saída inesperada do ex-presidente, que renunciou e hoje comanda a campanha da Argentina, pode levar à fragmentação do partido, no qual ele não tem um sucessor claro. Dentro do MAS, no entanto, o discurso é de união. Fontes da legenda afirmam que um nome será definido até o fim do mês.

A repórter viajou a convite da Fundação Konrad Adenauer (KAS)