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Nobel da Paz e presidente de Mianmar são presos pelos militares

Detenções ocorreram dois meses depois de vitória do partido governista nas eleições gerais, um resultado que não foi aceito pelas Forças Armadas
Conselheira de Estado e líder de fato de Mianmar, Aung Saan Suu Kyi vota nas eleições gerais de novembro de 2020 Foto: Thar Byaw / REUTERS
Conselheira de Estado e líder de fato de Mianmar, Aung Saan Suu Kyi vota nas eleições gerais de novembro de 2020 Foto: Thar Byaw / REUTERS

NAYPYIDAW — As Forças Armadas de Mianmar prenderam uma série de integrantes do governo civil, incluindo o presidente Win Myint e a Nobel da Paz e líder de fato do país, Aung San Suu Kyi , no que foi denunciado como um golpe militar por seu partido. As detenções, que também incluíram vários ministros, foram confirmadas pela legenda governista e ocorrem em meio a questionamentos dos militares sobre os resultados das eleições de novembro.

Ao revelar as prisões, o porta-voz da Liga Nacional pela Democracia (LND) afirmou à agência Reuters que os políticos detidos foram levados no começo da manhã de segunda-feira (noite de domingo no Brasil), sem detalhar possíveis motivações. Ele ainda pediu que não haja reação violenta por parte da população.

— Quero pedir ao nosso povo que não aja de maneira dura, e quero que ajam de acordo com a Lei — declarou Myo Nyunt, dizendo ainda esperar que ele mesmo fosse preso nas horas seguintes. — Com a situação que está acontecendo agora, temos que assumir que os militares estão dando um golpe.

A TV estatal saiu do ar e informou, em publicação no Facebook, que problemas técnicos impediam suas transmissões. Há relatos de dificuldades para fazer ligações telefônicas do exterior ao país.

Os militares ainda não se pronunciaram. Mais cedo, grupos nacionalistas de oposição marcharam pelas ruas de cidades de todo o país, e bandeiras da Liga foram queimadas em alguns atos.

Na votação, vencida de maneira ampla pela Liga Nacional pela Democracia, de Suu Kyi, os militares relataram a ocorrência de milhares de casos de fraudes, o que foi refutado pelas autoridades eleitorais. A votação deu à Liga o controle de 396 dos 476 assentos do Parlamento, enquanto o Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelas Forças Armadas, ficou com apenas 33. A Casa começaria os trabalhos nesta segunda-feira.

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Os rumores de que um golpe era cada vez mais possível se amplificaram na semana passada, quando o comandante das Forças Armadas, general Min Aung Hlaing, declarou que a Constituição poderia ser revogada caso considerassem que ela não estava sendo "propriamente cumprida". Na mesma ocasião, um porta-voz militar afirmou que "não estamos dizendo que vamos tomar o poder, mas também não estamos dizendo que não vamos (tomar)". No sábado, militares refutaram as acusações de que estavam planejando um golpe, dizendo que as declarações de Hlaing foram tiradas de contexto pela imprensa e diplomatas ocidentais.

Mesmo assim, a presença ostensiva de veículos militares nas ruas chamou a atenção, e colaborou para reforçar a ideia de que uma ação era iminente. Na sexta-feira, representantes de países como os EUA, Austrália e Reino Unido, além da União Europeia, pediram a todos os lados que mantenham a calma, sob o risco de abalar a transição democrática.

Em 2019: Corte Internacional de Justiça começa a julgar caso de genocídio em Mianmar

Mianmar foi comandada por uma junta militar por cinco décadas, até o início de uma transição rumo à democracia iniciada em 2010 e  que contou com a participação de Aung San Suu Kyi, vencedora do Nobel da Paz em 1991. Ela chegou ao poder em 2015, após uma vitória esmagadora da LND nas urnas,  e hoje é líder de fato do país como conselheira de Estado, sobrepondo-se politicamente ao presidente. Ao mesmo tempo, as Forças Armadas mantiveram uma importante parcela de poder do país asiático. Eles mantém, por exemplo, uma cota de um quarto dos assentos no Parlamento, além de cargos importantes no Gabinete ministerial.

Ao mesmo tempo, parte da população e da opinião pública internacional se mostrou decepcionada com a forma como a Liga vem conduzindo o processo de transição democrática, em especial sobre o papel de Aung San Suu Kyi. Apontada como ícone da defesa da democracia durante o regime militar, quando passou 15 anos em prisão domiciliar entre 1989 e 2010, ela rapidamente adotou posições questionáveis, como na situação da minoria rohingya, alvo de uma violenta campanha de repressão apontada como um caso de genocídio por organizações internacionais.

Em 2019, ela compareceu à Corte Internacional de Justiça, em Haia, para defender o país e o seu governo das acusações de massacrar a minoria, que é muçulmana, e provocar o êxodo de 730 mil pessoas rumo ao vizinho Bangladesh.

Apesar de reconhecer a possibilidade de "excessos", ela disse que não havia a perseguição específica a um grupo.

Suu Kyi também defendeu a prisão de dois jornalistas da agênca Reuters, que descobriram uma vala coletiva onde foram enterrados os corpos de dezenas de rohingyas, mortos pela repressão estatal. Eles foram detidos em 2017, e condenados com base em uma lei da época colonial sobre a divulgação de documentos secretos. Quando questionada sobre o caso, Suu Kyi demonstrou irritação, e repetiu algumas vezes que eles estavam sendo punidos por terem violado as leis. Os dois foram libertados em maio de 2019.

Nos últimos anos, ela perdeu o prestígio que tinha no cenário internacional, inclusive ficando sem alguns dos muitos títulos recebidos de organizações como a Anistia Internacional. Em 2018, a Comissão Norueguesa do Nobel, responsável pelo Nobel da Paz, rejeitou a retirada da honraria dada à líder birmanesa.