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Mundo China

Nos 100 anos do Partido Comunista que reinventou o capitalismo, China celebra retorno à posição de potência

Marcada pelo pragmatismo que a levou do maoismo às reformas de mercado, sigla transforma aniversário em oportunidade de buscar legitimidade na História e projetar o futuro
Turismo vermelho turbinado: visitantes diante de pinturas de Mao e Deng Xiaoping em uma exposição em Pequim, uma das dezenas que celebram o centenário do PC chinês Foto: GREG BAKER / AFP
Turismo vermelho turbinado: visitantes diante de pinturas de Mao e Deng Xiaoping em uma exposição em Pequim, uma das dezenas que celebram o centenário do PC chinês Foto: GREG BAKER / AFP

XANGAI — Caminhando com dificuldade, Li Yongnian é amparado pelas duas filhas enquanto observa as fotos da grande exibição montada em Xangai para o centenário do Partido Comunista da China (PCC), comemorado em 1º de julho. Aos 90 anos, Li foi testemunha da enorme transformação da China nesse período, e em grande parte a história contada ali , no local onde o partido foi fundado, se confunde com a sua.

Nascido numa era em que seu país estava retalhado entre turbulências domésticas e agressões externas, o aposentado se reinventou várias vezes para sobreviver, de agricultor na época em que a China era majoritariamente rural a pequeno empresário, quando o governo abriu a economia à iniciativa privada. Lembrando da infância e da mãe que morreu de desnutrição aos 40 anos, Li diz que jamais imaginou que a China chegaria perto do estágio atual de desenvolvimento e importância internacional.

— Eu saía todo dia com a minha mãe para pegar o mato que crescia na beira da estrada. Era a única coisa que tínhamos para comer. Hoje a China é independente, rica e poderosa, e devemos isso ao Partido Comunista e sua capacidade de unir o país.

União, independência, prosperidade e poder são palavras que resumem para muitos chineses o que está por trás da longevidade do PCC, o segundo partido há mais tempo no poder no mundo (atrás somente do Partido dos Trabalhadores, da Coreia do Norte). São também as conquistas que a propaganda oficial costuma repetir para dizer que sem o PCC não haveria a “nova China”, e que só o partido é capaz de restaurar as glórias que o país acumulou em cinco mil anos antes de entrar em declínio, em meados do século 19.

Com raras exceções, os erros e perseguições políticas do partido que custaram a vida de milhões de pessoas são varridos para debaixo do tapete. Ao longo dos anos, o partido soube se reinventar, absorveu tecnologias do exterior e adaptou antigas instituições da burocracia chinesa às suas necessidades para criar uma poderosa máquina de governo capaz de tirar 700 milhões de pessoas da pobreza. Ao moldar o capitalismo às condições locais, modernizou o país e o transformou numa potência econômica com crescente influência global, enquanto assegurou a longevidade no poder também por meio de repressão política em níveis variados , que se intensificou nos últimos anos com o auxílio da vigilância tecnológica.

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O PCC chega ao seu centenário com a autoestima reforçada pelo sucesso recente no controle da pandemia de Covid-19 e a ambição de dominar as tecnologias do futuro. Ao mesmo tempo, seu discurso é ancorado no passado, usado para justificar sua legitimidade como o responsável por encerrar o “século de humilhação” sofrido pela China por agressões externas. O controle da narrativa é tão importante que, numa recente viagem organizada pelo governo para jornalistas a marcos da história do PCC — um roteiro conhecido como “turismo vermelho” —, havia um historiador do partido sempre a postos para tirar dúvidas.

História como religião

Para os chineses, “a História é a nossa religião”, observou o escritor exilado nos EUA Hu Ping, argumentando que sem parâmetros sobrenaturais do que é o bem e o mal, como em países onde a religião tem maior influência, “nós vemos a história como o juiz supremo”. Na trajetória do PCC, as referências a seu próprio passado e à história milenar da civilização chinesa sempre serviram como instrumento para mobilizar a população e reforçar a autoridade do partido. Mao Tsé-tung, o líder da revolução comunista, se considerava uma combinação entre o primeiro imperador da China unificada, Qin Shi Huang, e Karl Marx.

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Hoje, na essência da visão propagada pelo presidente Xi Jinping está o “rejuvenescimento da nação chinesa”, um slogan que cria uma imagem de futuro, mas com um pé na ideia de que o país apenas está voltando à posição natural de potência mundial que ocupou até o século 19. A palavra “fuxing”, geralmente traduzida como rejuvenescimento, tem um sentido mais profundo em mandarim: “renascimento”.

Criado em Xangai em 1921 por 13 entusiastas da revolução comunista na Rússia, o partido é hoje o maior do mundo, com 93 milhões de membros e controle absoluto sobre um país que está prestes a se tornar a maior economia do planeta. Naquela época, porém, o comunismo era só mais uma das muitas ideologias importadas que circulavam entre os chineses, desesperados para achar meios de unir e reerguer um país humilhado. Com a ajuda inicial da União Soviética, com a qual romperia mais tarde, o partido aos poucos cresceu, transformou-se num exército de camponeses para resistir à invasão japonesa, derrotar o Partido Nacionalista de Chiang Kai-shek e fundar a República Popular da China, em 1949.

Apesar das raízes marxistas, a principal característica do partido ao longo dos seus cem anos não foi o fervor ideológico, mas o pragmatismo , afirma o historiador alemão Klaus Mühlhahn. Tal pragmatismo teve consequências diretas no destino da China: foi capaz de garantir a sobrevivência do partido, em muitos momentos com alto custo para a população,  e também de promover a arrancada econômica do país a partir da década de 1980.

— A maior conquista do PCC foi obter prosperidade e poder, soberania e respeito, tanto respeito próprio quanto internacional. Seu maior fracasso foi o grande número de chineses que morreram, foram mortos e perseguidos nas mãos do regime — diz o sinólogo americano David Shambaugh, da Universidade George Washington.

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Entre os chineses em geral, prevalece também um senso prático em relação ao partido. Um dos maiores incentivos para ingressar no PCC não é ideologia ou nacionalismo, mas a percepção de que isso confere status, cria uma rede de contatos útil e abre as portas para uma carreira promissora, seja numa estatal ou no setor privado, onde o direcionamento do governo movimenta a engrenagem do capitalismo de Estado chinês.

Comunismo como marca

Enquanto o comunismo ainda provoca pesadelos em muita gente ao redor do mundo, na China ele é principalmente sinônimo de poder. O país não tem nada de comunista, mas essa é a marca do partido “e agora é tarde demais para recriá-la”, diz um historiador, que por razões óbvias pede para não ser identificado. Para fortalecer essa marca e manter o país na linha, o partido usa símbolos de sua história como inspiração para os tempos atuais.

Na cidade de Jaixing, onde segundo a narrativa oficial os fundadores do PCC se esconderam num barco depois que sua primeira tentativa de fundar o partido foi interrompida pela polícia em Xangai, o governo local se esforça para explicar como está aplicando as lições da história. Vigiado por um soldado, o  barco é um dos pontos altos do “turismo vermelho", ao lado de um grande memorial dedicado à reunião de 1921. De acordo com Zhang Bing, secretário do PCC de Jiaxing, a ideia é preservar em tudo o que fazem o “espírito do barco vermelho”, expressão consagrada por Xi Jinping quando o presidente esteve no local, em 2017. Isso significa “pioneirismo, devoção e inovação”, diz Zhang.

Quarenta e cinco anos depois de sua morte, Mao Tsé-tung ainda é o maior ícone da China comunista. Sua imagem continua sendo exibida na entrada da Cidade Proibida, no coração de Pequim, e em todas as cédulas do dinheiro chinês. Mas nos últimos anos, o espírito do PCC tem se concentrado cada vez mais em um nome: Xi Jinping. Desde que assumiu a liderança do partido, no fim de 2012, Xi assumiu mais poderes do que qualquer outro líder chinês desde Mao.

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Incluído em 2018 na Constituição chinesa, o “pensamento de Xi Jinping" se expressa na expansão do Partido Comunista a todas as áreas da vida do país, da cultura aos negócios, sob o lema do “sonho chinês”, ou o “rejuvenescimento da nação chinesa”. Se nos anos posteriores à entrada na Organização do Comércio (OMC), em 2001, a China deu passos significativos para a liberalização de sua economia, com a chegada de Xi ao poder o papel do Estado tornou-se mais proeminente. Em 2017, por exemplo, o governo emitiu novas diretrizes para empresas privadas, em que elas devem adotar o “pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas”, previsto na Constituição. Nos filmes comemorativos do centenário, a ordem também foi enfatizar a doutrina Xi.

Essa nova reinvenção do PCC intriga especialistas e diplomatas baseados em Pequim, que tentam entender como o país poderá continuar crescendo e inovando sob o controle cada vez maior do Estado. Para os acadêmicos chineses próximos ao partido, no entanto, trata-se de mais uma demonstração de que o PCC é capaz de adaptar-se às circunstâncias. Os modelos do passado são apenas uma inspiração para enfrentar os novos desafios, como a ameaça dos Estados Unidos de conter o desenvolvimento da China, diz o ex-diplomata Wang Yiwei, vice-presidente do centro de estudos do pensamento de Xi Jinping.

— Há dois Karl Marx, o alemão e o chinês. O Marx alemão é um economista. Para os chineses Marx significa adaptação à realidade. E Xi Jinping é o Marx do século 21.