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Por Marcelo Ninio; Especial Para O Globo — Pequim


O dissidente chinês Zhou Fengsuo participa de uma manifestação contra a invasão russa da Ucrânia em Nova York: ele vê o mesmo perigo em Taiwan — Foto: Arquivo pessoal
O dissidente chinês Zhou Fengsuo participa de uma manifestação contra a invasão russa da Ucrânia em Nova York: ele vê o mesmo perigo em Taiwan — Foto: Arquivo pessoal

A China nunca mais foi a mesma depois dos protestos da Praça da Paz Celestial, em 1989. Este talvez seja o único consenso entre o governo chinês e os dissidentes sobre o movimento pró-democracia que reuniu milhões no coração de Pequim há três décadas. O evento também transformou para sempre os líderes do protesto, como Zhou Fengsuo, hoje com 54 anos.

Na época estudante de Física, Zhou foi um dos primeiros a chegar à praça quando tudo começou, em abril daquele ano. Foi também um dos últimos a sair, no dia 4 de junho, quando o Exército deu um ponto final ao movimento de forma sangrenta. Zhou entrou no topo da lista de procurados, ficou um ano preso, e em 1995 mudou-se para os Estados Unidos, onde se estabeleceu e tornou-se ativista de direitos humanos e investidor independente.

O massacre, que completa 33 anos neste sábado, ainda é assunto proibido na China. De Nova Jersey, onde vive, Zhou relembrou ao GLOBO os ventos de mudança em Pequim nos anos 1980, lamentou a ignorância dos jovens chineses de hoje sobre os eventos e, apesar do endurecimento político do país nos últimos anos, disse estar confiante de que a China ainda será uma democracia: "É da natureza humana amar a liberdade".

O que passa na sua cabeça nesta data?

É sempre um dia triste para mim. Me lembra das mortes trágicas de pessoas inocentes num movimento que simplesmente pedia liberdade e democracia. Como sobrevivente, me corta o coração ver as memórias sendo apagadas. Os responsáveis estão impunes, e a China se afasta mais do que nós pedíamos há 33 anos.

Como os protestos mudaram a China?

O massacre definitivamente mudou o país. Encurralou a China num beco sem saída em que liberdade, democracia e direitos humanos sempre precisam ser reprimidos para preservar um governo que perdeu a legitimidade ao matar inocentes sob os olhares do mundo. É a data mais importante da História da China. Agora o país se torna mais importante e influente, mas a trajetória foi determinada 33 anos atrás. Se você permite que um governo use tanques e armas para invadir sua própria capital e matar milhares de inocentes, não é surpresa que hoje haja campos de concentração, a lei de segurança nacional em Hong Kong, ameaças a Taiwan e riscos globais às liberdades e à democracia por meio de tecnologia chinesa.

Como era a China antes dos protestos?

Foram sem dúvida tempos esperançosos, inspiradores e de afirmação para o povo chinês. Começou no fim dos anos 1970, quando o próprio governo estava se recuperando da Revolução Cultural, e rejeitou parcialmente a ideologia de Mao. Como resultado disso, dentro da elite de poder surgiram vozes progressistas em defesa de mais liberdades, embora o Partido em seu núcleo sempre tenha resistido a isso. Havia muitas críticas ao passado e um esforço para promover uma abertura, tanto política como econômica. A disputa era visível. Infelizmente em 1989 Deng [Xiaoping] era o comandante das tropas e se sobrepujou às lideranças do partido e do governo. Certamente o massacre foi um rompimento muito abrupto do que vinha acontecendo nos anos anteriores. Hoje em dia, quanto mais eu penso naquela época mais eu acho que Deng estava em minoria. Mas ele tinha o controle das tropas. Em Tiananmen [Praça da Paz Celestial] havia milhões de pessoas e o consenso era o desejo de buscar uma China aberta e mais livre. Tínhamos apoio até às altas autoridades, inclusive das tropas, que foram forçadas a implementar a lei marcial e se recusaram a cumpri-la. Tivemos contato com os soldados e à medida que os anos se passaram eu fui conhecendo melhor os fatos e isso ficou mais claro para mim.

Deng entrou na história como o herói da abertura que tornou a China moderna, mas sua imagem dele é bem diferente.

Mas é definitivamente verdadeira. Mesmo dentro do governo comunista, ele não seguiu as regras. Este ano fiz uma exibição do 4 de junho na minha casa e mostrei uma pesquisa de 2 de maio de 1989, em que mil pessoas foram entrevistadas, de toda a sociedade, e 99% apoiavam ou eram simpáticas ao movimento.

Você esteve entre os primeiros a chegar à praça após a morte do líder reformista Hu Yaobang. O que vocês queriam?

Estávamos preocupados com o futuro do país e queríamos demonstrar apoio a Hu, pedir que a China seguisse o que ele defendia. Foi um gesto muito arriscado. Tiananmen é o centro nervoso da China, intensamente policiado. Foi uma grande surpresa quando nos deixaram entrar. Mostra que havia opiniões diversas no governo. Algo também muito significativo foi o fato de nossa mensagem ter sido reproduzida por parte da imprensa estatal, algo que me deixou perplexo. Aí eu vi que alguma coisa diferente estava acontecendo, que nossas ideias estavam ecoando. Aos poucos virou um movimento para que a China se tornasse uma democracia, mas por meio do sistema. Acreditávamos que a liberdade estava ao nosso alcance.

Você também foi um dos últimos a sair da praça. Qual a sua lembrança do dia 4?

Pequim virou uma zona de guerra. Soldados e tanques cercaram a praça por todos os lados. As mortes ocorreram quando o povo tentou nos proteger. Após o massacre, fui colocado como número cinco na lista dos procurados. Fiquei preso um ano em condições terríveis, algemado três meses. Era interrogado noite adentro, submetido a lavagem cerebral. Inventaram histórias, nos acusaram de estarmos a serviço de forças estrangeiras, mas, como não havia nada disso, eu podia simplesmente contar a verdade, porque sabia que éramos completamente inocentes.

Você ficou na China até 1995. Como foram esses cinco anos pós-Tiananmen?

Olhando para trás acho que foi um período muito significativo. Foi o começo da segunda parte da minha vida. Antes eu era só um estudante normal, e hoje eu sou um ativista, um combatente da liberdade, para alguns um dissidente. Esse período na China foi muito importante porque eu tive que encarar a realidade de que eu seria um inimigo desse governo para sempre. E, claro, eu não acredito na legitimidade dele e estou convicto de que o que eu fiz estava certo. Tive que encarar esse governo que está em todo lugar. Fui vigiado, perseguido por toda a parte, assediado. Por outro lado, havia oportunidades e eu fui capaz de ganhar muito dinheiro no mercado de ações, o que me tornou financeiramente independente, e isso foi importante. Mais importante foi o contato que tive com outros participantes dos protestos que foram presos como eu, e ver que a sociedade em geral me apoiava, ou pelo menos era simpática, mesmo sabendo que eu fazia parte da lista dos mais procurados. Até membros do governo muitas vezes tentavam me encorajar. Isso foi muito importante para mim. Hoje a China é muito diferente, mas aquilo me mostrou que há diferentes possibilidades.

Por que deixou o país?

Era o meu plano mesmo antes dos protestos, sair para estudar. Eu me preparava para exames. Depois dos protestos me negaram a possibilidade de ter um passaporte por muitos anos. Quando eu fui não tinha exatamente a noção de que não poderia voltar. Minha maior preocupação era como me virar nos EUA nos próximos anos. Mas, claro, não imaginei que a China ficaria trancada desse jeito numa ditadura por tantos anos. Era algo além dos meus piores pesadelos.

Muitos jovens chineses hoje pouco sabem do massacre. O que sente sobre isso?

É muito triste. É também um mau agouro para o futuro da China, porque quem não tem passado não tem futuro. O momento mais importante do país foi completamente apagado. Pior ainda, muitos aceitam a versão do governo. Encontrei alguns estudantes e vi que eles basicamente seguem a propaganda do governo. Para mim isso é ao mesmo tempo desalentador e estimulante, porque me mostra a importância de preservar a memória e a esperança de uma China melhor, antes que nossa geração se torne extinta. Queremos que as novas gerações lembrem, e, mais importante, que abracem valores universais, é a única forma de a China se tornar uma fonte de inspiração para a paz e prosperidade.

O jornal estatal "Global Times" afirmou que a ação do governo “salvou a China” de se desintegrar como a União Soviética. O que acha disso?

É ridículo e ultrajante. Declarar vitória depois da morte de tantos inocentes. É algo que está além da compreensão de qualquer pessoa com consciência. Isso só mostra que eles têm a ambição de mudar totalmente a narrativa, embora o mundo inteiro estivesse assistindo a tudo. É um passo natural para [o presidente] Xi Jinping, que é mais expansionista que seus antecessores. Ele não quer mudar só o povo chinês, mas o mundo inteiro. O pensamento é: nós somos tão fortes agora que podemos fazer tudo, até as coisas mais desumanas.

Muitos falam em um acordo tácito entre governo e povo, em que a população abre mão de liberdade em troca de prosperidade. Acha que a maioria aceita isso?

Difícil saber. Veja a quarentena em Xangai: as pessoas não tiveram escolha. A maioria tem medo. Por outro lado, o governo gasta fortunas em segurança para conter a oposição, o que mostra que se sente vulnerável. Por isso, acho que há razão para otimismo. Não seria surpresa uma mudança repentina para outra direção.

O governo chinês tem dito que o país tem uma democracia, e que ela é mais eficiente que nos EUA. Como alguém que lutou pela democracia, o que acha disso?

É ridículo e ultrajante. Mas eles têm no momento controle total. Se é verdade, simplesmente deixem as pessoas falar livremente e votar, isso é democracia.

O que achou da visita à China da alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet?

A ONU é uma desgraça, e a visita causou mais danos à legitimidade da organização. Ela esteve com as autoridades, mas não ouviu as vítimas. Como mudar o país? Será doloroso, mas é preciso confrontar a China. Os EUA devem assumir a liderança, usando o comércio. Eu fui libertado porque todo ano havia a renovação da cláusula NMF (nação mais favorecida, que dá preferências comerciais), e a China fazia concessões. Mas os EUA aboliram o elo entre NMF e direitos humanos, a China entrou na Organização Mundial do Comércio, não há mais poder de pressão. Deveríamos trazer isso de volta. Há dois trens indo em direções opostas, como na questão de Taiwan. Basta ver o que ocorre na Ucrânia por causa de um líder louco com poder sobre o Exército. É uma situação parecida. Se quisermos evitar o mesmo com a China temos que forçá-la a prestar contas em direitos humanos por meio do comércio. Talvez seja tarde demais, porque a China agora tem um papel dominante em Wall Street. Mas precisamos tentar.

Outros países, como o Brasil, também têm um papel nisso?

Sim, é claro. No longo prazo, em defesa da paz e da prosperidade mundiais, não se pode permitir que um regime como o chinês se torne ainda mais forte. A situação com a Rússia mostra isso. Se a China atacar Taiwan haverá uma ruptura no comércio que afetará a todos, sem falar na consequência moral de subsidiar esse tipo de regime. É um risco significativo para todos os países.

Em 2014 você voltou à China para uma breve visita. Como foi ver o país após décadas de modernização?

Meu coração continua com as pessoas que estavam ao meu lado há 33 anos. Não importam as mudanças na superfície. Pequim é sempre importante para mim, especialmente a área de Tiananmen. Claro, havia muito mais prédios altos do que antes, mas as pessoas estavam com medo. Ninguém falava sobre o assunto. Fiquei surpreso ao ver muita gente vestida de preto na véspera do aniversário do massacre. A polícia estava questionando pessoas e parando carros. Dei uma olhada em Tiananmen e a praça estava completamente vazia. Foi muito estranho pensar nos milhões de pessoas e vozes daquela época e ver a praça totalmente às escuras.

Xi Jinping é visto como o líder chinês mais poderoso desde Mao Tsé-tung. Qual é a sua opinião sobre a direção que ele está dando ao país?

Há dez anos, quando Xi Jinping estava emergindo para ser o líder, havia muitos debates sobre a direção que ele iria dar ao país. Muita gente dizia que ele iria abrir o país em nome do pai, que foi marginalizado por ser reformista. Eu disse na época que Xi é um dos filhos espirituais de Mao. Sua ambição é ser um líder supremo. Significa também ambições de expansão global. Um dos meios é a nova rota da seda, para aumentar a influência chinesa. Outro é alguma conquista territorial, provavelmente Taiwan. É errado pensar que Xi é um ponto fora da curva na história da China, porque em 1989 um líder foi capaz de ordenar um massacre e ainda ser venerado. A diferença é que em 1989 a China era relativamente fraca. Agora o governo crê que os EUA estão em declínio, considera a ordem mundial anestesiada e acha que pode transformá-la.

Apesar de tudo, você mantém o otimismo sobre a democratização da China. De onde vem a confiança?

É o caminho natural da história, nos tornarmos mais civilizados, menos controlados. Acho que a China não pode mudar a história do mundo. Como tornar a China uma democracia? Isso nós não sabemos. A China vai mudar, seja por forças internas ou externas, Do jeito que está indo é insustentável. É da natureza humana amar a liberdade e viver com dignidade, não como escravos. Por outro lado, há coisas funcionando para o PCC, infelizmente. Coisas que eram boas, como comércio global e tecnologia, agora parecem estar fortalecendo o controle, em todos os aspectos. Para mim isso é inaceitável e acho que para a maioria das pessoas também. Em algum momento os chineses também rejeitarão isso.

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