Mundo
PUBLICIDADE

Por Ana Rosa Alves

Não foi por nada que Boris Johnson ganhou a fama de sobrevivente: mesmo pressionado por todos os lados, sempre encontrou brechas para escapar de imbróglios que puseram fim a várias outras carreiras políticas. Desta vez, contudo, não houve manobra ou negociação que salvasse o primeiro-ministro teflon. E os problemas britânicos não param na relação conturbada do demissionário chefe de governo com a verdade.

A impudência do premier lhe deu algumas sobrevidas durante seus três anos à frente do governo. A maior delas no dia 6 de junho, quando mobilizou apoio suficiente para sobreviver a uma moção de desconfiança após o “partygate”, um escândalo de meses desencadeado pela revelação de que festas foram realizadas na sede do governo em Downing Street quando os britânicos estavam em quarentena para conter a Covid-19.

Boris, de início, negou ter participado dos eventos, até que vieram à tona fotos suas na celebração. Por dias, Londres também disse que o premier não sabia das denúncias de assédio sexual contra o vice-líder da bancada do Partido Conservador, Chris Pincher. Quando o mundo descobriu a mentira, quase 60 integrantes do governo pediram demissão em menos de 48 horas — o golpe fatal contra o primeiro-ministro.

O premier, ainda assim, não desistiu de primeira, rejeitando na tarde de quarta os conselhos de uma delegação de ministros para que renunciasse durante a tarde. Demitiu Michael Gove, o ministro de Habitação. Outrora um dos maiores aliados do premier, Gove foi o primeiro a alertá-lo que era hora de desistir. Pouco depois, Boris anunciou ainda que lançaria um novo plano econômico para suspender o aumento de impostos corporativos e dar cortes fiscais para os mais ricos. Nada disso deu certo, e o premier largou o osso nesta quinta.

O espetáculo político ofuscou o conturbado momento econômico, mas a economia não tem nada de coadjuvante na crise britânica. Em maio, por exemplo, a taxa de inflação anual no país chegou a 9,1%, a maior desde os anos 1980. A previsão é que termine o ano em 11%, nove pontos acima da meta oficial.

Boris culpava a pandemia e a invasão russa da Ucrânia, mas o país está atrás de todos os outros integrantes do Grupo dos Sete (G7) na recuperação pós-pandêmica. A perspectiva é que, no ano que vem, os britânicos tenham a segunda menor taxa de crescimento entre os países do G20, que reúne as maiores economias do mundo. A lanterna ficará com a Rússia, alvo de uma enxurrada de sanções ocidentais devido à guerra.

O ainda primeiro-ministro alertou, no mês passado, que não queria uma “discussão infernal, como em um dia da marmota, sobre os méritos de pertencer ao mercado comum” europeu. Há semanas, ele se recusava a pedir uma investigação formal sobre o custo real do divórcio da União Europeia, defendendo uma narrativa cada vez mais insustentável de que seus benefícios eram superiores aos prejuízos.

Desde janeiro de 2021, quando o Reino Unido finalmente deixou o mercado comum europeu após 50 anos, o comércio entre os dois lados do Canal da Mancha caiu quase um terço, segundo uma análise feita pela London School of Economics. O preço da comida disparou em solo britânico, aumentando no maior ritmo em 14 anos. As importações vindas do bloco caíram e as exportações não cresceram em comparação com o pré-pandemia. As rusgas iniciadas por Boris para alterar os termos do pacto de saída a seu favor, por outro lado, foram múltiplas.

Os próprios europeus afirmam que, conforme os impactos da Covid-19 se dissipam, os efeitos do Brexit ficam cada vez mais evidentes e que não há acordo de livre comércio que substitua o mercado comum. O então ministro do Tesouro, Rishi Sunak, cuja renúncia na terça foi uma das que motivou a debandada em massa do governo, chegou a admitir que o desempenho econômico aquém do esperado “poderia ser” por causa da ruptura, apesar de dizer que maiores conclusões são precipitadas.

— Essa é uma situação que está se desenrolando há três anos, desde que ele se tornou primeiro-ministro. É um desastre — disse ao GLOBO o economista da Universidade de Londres Guy Standing, ligado à oposição trabalhista. — Se não fosse pelas mentiras que Boris contou, o Reino Unido não teria deixado a União Europeia.

Não foi por falta de alerta: o primeiro sinal foi imediato. Logo após o referendo de 2016, quando os britânicos votaram pelo divórcio, a libra esterlina caiu quase 10%. Dois anos depois, uma análise do Centro para Pesquisas sobre Política Econômica, mostrava que apenas as negociações do Brexit fizeram os preços para os consumidores subirem 2,9%.

Os defensores do rompimento, contudo, apostavam em táticas populistas para desviar dos debates sobre possíveis impactos negativos. O próprio Boris chegou ao poder prometendo pôr um fim à novela, custasse o que fosse. Talvez não previsse que um dos custos seria sua própria cabeça.

'Estou triste por desistir do melhor emprego do mundo', diz Boris Johnson

'Estou triste por desistir do melhor emprego do mundo', diz Boris Johnson

Nos últimos dias, houve greves de trabalhadores ferroviários e motoristas de ônibus, que pedem reposição salarial. Já estão agendadas paralisações de empregados de companhias aéreas, advogados e funcionários dos correios — cenário que faz muitos traçarem paralelos com o inverno do descontentamento de 1978, quando a inflação alta, déficits no balanço de pagamentos e sucessivas greves culminaram na chegada de Margaret Thatcher ao poder.

A queda do premier é apenas uma peça do quebra-cabeça, e deixa um cenário conturbado para seu ainda desconhecido sucessor. Para Standing, a solução é uma reforma profunda no funcionamento das engrenagens do país, que repense a concentração de renda e faça frente à corrupção, mas esbarra na falta de uma narrativa progressista que seja crível e na ausência de novos nomes.

— Estamos em um interregno de lideranças — afirmou ele, destacando que o mesmo vale para os conservadores e neoliberais. — O tempo passou para os figurões antigos. Um realinhamento político é a única solução possível a longo prazo — completou, defendendo mudanças como uma reforma eleitoral.

Uma renovação parece improvável, e dois dos favoritos para substituir Boris são Sunak e Sajid Javid, o ex-ministro da Saúde que também renunciou na quarta. Ambos estiveram ao lado do premier durante boa parte de seu mandato e apostaram com razão que as denúncias em massa seriam suficientes para causar um terremoto em Downing Street.

Sunak, Javid e os outros conservadores pularam do barco apenas quando ele estava prestes a afundar. Acusam Boris de ser moralmente incapaz de comandar o Reino Unido, mas estiveram ao seu lado durante a maior parte do mandato. E também de suas mentiras.

Os episódios envolvendo Pincher e o “partygate” são apenas uma amostra do controvertido histórico do premier. Ele mentiu sobre quem pagou pelas suas férias, sobre sua resposta catastrófica ao início da pandemia e sobre o restauro da residência oficial. Foi demitido do jornal The Times, onde trabalhava como repórter nos anos 1980, por inventar uma citação. Mentiu sobre um caso que teve enquanto estava casado e o aborto realizado pela amante.

Este último incidente, inclusive, fez com que fosse demitido da alta cúpula do Partido Conservador em 2004, após se recusar a sair por conta própria. Catorze anos depois, deu o braço a torcer e renunciou pela primeira vez em sua carreira, abrindo mão do cargo de ministro das Relações Exteriores. Mirava, contudo, algo maior.

Em menos de 12 meses, seria empossado como premier pela rainha Elizabeth II, substituindo a também conservadora Theresa May. Não está claro, contudo, se os responsáveis pelas renúncias que catalisaram o esvaziamento do governo terão a mesma sorte do premier demissionário ou se a sorte maior será daqueles que afundaram ao seu lado, como a chanceler Liz Truss, apostando que herdariam a tocha entre os mais radicais.

Mais recente Próxima
Mais do Globo

Máscara mortuária da cantora é um dos itens que serão apresentados apenas neste fim de semana

Museu Carmen Miranda celebra um ano de reabertura com shows e exposição especial

Modalidade inédita do TSE dá opção para candidaturas se afirmarem cis ou trans e detalharem orientação sexual, mas ainda não teve forte adesão

Maioria dos candidatos no RJ e em SP ignora identidade de gênero e sexualidade no registro

Endereço no número 343 da Rua Cosme Velho foi residência do pintor na década de 1940

Casa onde morou Candido Portinari, no Rio, tem risco de colapso e sofre com roubos: 'Tristeza profunda', diz o filho do artista

Cruz-maltino vem de duas derrotas na competição e espera derrotar o Bragantino, no primeiro jogo do meia na casa do clube

Vasco busca retomada no Brasileiro na estreia de Coutinho em São Januário

Clube mergulhará em estudos específicos sobre o novo palco para definir produtos que irão à concorrência entre empresas interessadas, incluindo a obra em si

Após pagar por terreno, Flamengo inicia segunda fase de projeto de estádio; entenda o que será feito

Brasileiros Gabriel Medina e Tatiana Weston-Webb estão classificados para as semis

Olimpíadas: semifinais e finais do surfe estão adiadas; entenda motivo de tantas remarcações

Além das boas lembranças, podemos trazer inquilinos clandestinos como: bactérias, fungos, insetos e outros animais na bagagem

Voltou de viagem e vai desfazer a mala? Saiba por que você não deve fazer isso em cima da cama, segundo médicos

Sempre me pareceu muito mais difícil escrever para crianças, leitores terrivelmente atentos, inteligentes e implacáveis. Sei do que falo

Seleção do companheiro de chapa será uma das decisões mais importantes da democrata na corrida pela Casa Branca

Eleições nos EUA: Kamala deve escolher vice-presidente neste fim de semana; conheça os cotados