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Por André Duchiade

A Constituinte do Chile concluiu seus trabalhos, mas as fraturas políticas que em outubro de 2019 levaram o país às maiores manifestações de sua História seguem sem cicatrizar. Se no referendo de convocação teve o apoio de quase 80% dos chilenos, a Convenção Constitucional, liderada pela esquerda, perdeu crédito em seus 12 meses de trabalho, e hoje a opção de rejeitar o texto da nova Carta no plebiscito programado para 4 de setembro lidera as pesquisas.

Na manhã desta segunda, o documento final foi entregue ao presidente Gabriel Boric, em uma cerimônia simbólica. Os trabalhos de fato acabaram na terça-feira, após sessões finais incendiárias. Nos últimos discursos, constituintes de direita, que não alcançaram um terço dos assentos para ter poder de veto, acusaram a esquerda de desperdiçar uma oportunidade histórica de fazer uma Carta que unisse o país. Uma delas, Rocío Cantuarias (Evópoli), disse que via nos pares “aspirantes a revolucionários russos, ditadores africanos, guerrilheiros caribenhos, mas nenhum trabalhador chileno”.

Já constituintes independentes — em meio a algumas vozes mais sóbrias — defendiam com fervor o texto. Dayyana González, da Lista do Povo, afirmou que “a origem desse processo está na revolta, nas barricadas e na legitimidade do fogo”. A independente Bessy Gallardo acusou opositores de serem feitos de “miséria humana”. Aprovado o texto, muitos cantaram “o povo unido avança sem partidos”.

Espetáculo desaprovado

O espetáculo não tem caído bem. Segundo pesquisa do instituto Mori da semana passada, 42% dos chilenos hoje rejeitam a Carta, e 38% a aprovam. Há 9% de indecisos e 11% que pretendem se abster. A pesquisa mais recente da Cadem mostra diferença maior, com 51% de rejeição e 33% de aprovação, e 16% de indecisos.

As campanhas oficiais começam na quarta-feira e, para a maioria dos especialistas, continua a ser mais provável que o documento seja aprovado, por falta de alternativa. O Chile está prestes a completar três anos de instabilidade, e até a agência de risco Moody’s disse que a vitória do rechaço gerará “muito mais incerteza”. Além disso, a Carta atende às principais demandas de 2019 e inclui muito mais direitos sociais em áreas como saúde, educação e moradia do que a atual, que permanecerá em vigor se a rejeição ganhar.

Em termos de imagem, no entanto, o estrago já está feito. Para grande parte dos chilenos, o processo constituinte priorizou causas particulares e foi alheio ao sentimento geral. As deputadas e os deputados da primeira Constituinte com paridade de gênero mudaram muitas coisas de uma só vez, da Justiça às competências de Executivo e Legislativo. Para críticos, ao fazerem isso, tentaram refundar o país e ultrapassaram a missão que lhes cabia. Há também acusações de revanchismo da esquerda:

— Muitos votantes no “aprovo” há dois anos não esperavam um ânimo refundacional — afirmou ao GLOBO Cristóbal Bellolio, professor da Escola de Governo da Universidade Adolfo Ibañez. — Para que fosse possível construir um novo pacto de amizade cívica, era importante que todos sentissem que suas vozes estavam sendo ouvidas. Mas os constituintes [de esquerda] acharam que havia uma correlação de forças muito favorável e impuseram um 5 a 0.

Pelo lado positivo, os deputados constituintes conseguiram escrever um novo marco em um prazo muito apertado. As votações no plenário também moderaram os artigos vindos das comissões, e as propostas mais radicais ou mais exóticas — como a proibição de explorar recursos naturais, ou o reconhecimento da importância do reino dos fungos — acabaram excluídas.

Por outro lado, as mudanças incluem o fim do Senado, a transformação do Tribunal Constitucional, uma grande retirada de poder do Executivo e a declaração de que o Chile, a exemplo do Equador e da Bolívia, é um “Estado Plurinacional”, por comportar nações indígenas. Em outras inovações, a Carta também reconhece a validade da Justiça indígena, além de direitos reprodutivos como o aborto e de gênero.

Segundo o cientista político Gabriel Negretto, especialista em comparar processos constituintes da PUC-Chile, quando forem votar, daqui a dois meses, os chilenos não terão em mente tão somente o texto, mas também humores políticos recentes. Pesquisas apontam uma forte relação entre o apoio à Carta e ao governo Boric. O Chile enfrenta uma crise econômica, com forte inflação e desvalorização do peso.

— As pessoas raramente votam pelos méritos da proposta. Há uma série de questões de conjuntura, como a crise econômica, que podem afetar o voto — afirmou — Mas o produto final é razoável, e não há nada que vá produzir um descalabro sistêmico. Não há um argumento definitivo para votar no rechaço.

‘Aprovar para reformar’

Frente à resistência, cresce na esquerda a ideia de “aprovar para reformar”. A Carta seria aprovada para se virar a página, e em seguida aperfeiçoada. Já a direita argumenta que é necessário mudar a atual Carta, mas que a que será posta em votação não tem legitimidade. Os partidos conservadores deram orientação pela rejeição.

— Está claro o mandato cidadão de que precisamos de uma nova Constituição. É possível construir apoio social e chegar a um texto que seja aprovado por 70% ou 80% da população — disse Cristián Monckeberg, constituinte da Renovação Nacional, da direita, destacando que caberia ao governo capitanear o processo.

Multidão assiste à posse de Gabriel Boric no Chile

Multidão assiste à posse de Gabriel Boric no Chile

Por ora, o governo Boric evita discutir como procederá caso a rejeição vença. Aos poucos, o governo vem descolando sua imagem do apoio à nova Carta, e na semana passada Boric afirmou que o sucesso do seu governo “não é algo que está sujeito ao plebiscito”. Mesmo se a Constituição não passar e o Chile entrar em outro processo constitucional, segue incerto se um marco institucional é suficiente para resolver a crise política chilena.

— A sociedade não confia nos partidos, os partidos não têm raízes. Isso não vai mudar com uma nova Constituição, nem essa nem outra. É necessário mudar a forma de fazer políticas, fortalecer partidos, voltar ao terreno, fortalecer organizações da sociedade civil. A crise de confiança vai mais além da política, muita gente não confia em nenhuma instituição — afirmou Isabel Castillo, professora de Política e Governo da Universidade Alberto Hurtado.

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