Indígenas protestaram nesta quinta-feira durante uma missa do Papa Francisco no Santuário Nacional de Sainte-Anne-de-Beaupré, na província de Quebec. Em sua "peregrinação penitencial" pelo Canadá, o Pontífice se desculpou, no começo da semana, pelo "mal" cometido pela Igreja Católica contra os povos nativos do país.
A manifestação ocorreu no começo da cerimônia, quando um grupo de indígenas estendeu diante do altar uma faixa com os dizeres "Rescind the doctrine" ("Revogue a doutrina", em tradução livre), mas foi rapidamente afastado pelos seguranças. O cartaz fazia referência à "Doutrina da Descoberta", diretriz baseada em bulas papais do século XV, que autorizava potências colonizadoras a roubar terras de indígenas e subjugar povos nativos para convertê-los ao cristianismo. A doutrina nunca foi formalmente revogada.
Do final do século XIX até a década de 1990, o governo canadense enviou cerca de 150 mil crianças para 139 internatos administrados pela Igreja Católica, onde foram separadas de suas famílias, idioma e cultura. Muitas sofreram abusos físicos e sexuais nas mãos de diretores e professores, e acredita-se que milhares tenham morrido de doenças, desnutrição ou negligência.
Depois de dois dias na província de Alberta, durante os quais pediu desculpas às Primeiras Nações do Canadá, Metis e Inuits pelos abusos sofridos ao longo de um século, o Pontífice de 85 anos visitou, na quarta-feira, a cidade de Quebec, onde denunciou a "colonização ideológica", durante um discurso a autoridades do país, que o convidaram a tomar medidas que levem a uma "reconciliação real" pelas atrocidades cometidas.
— Ainda hoje, existem numerosas formas de colonização ideológica que se chocam com a realidade da vida, sufocam o apego natural dos povos aos seus valores e tentam desarraigar suas tradições, suas história e seus laços religiosos — disse Francisco.
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Mary Simon, primeira governadora-geral indígena do país, lembrou ao Papa o trabalho que resta pela frente.
— Independentemente do local de onde esteja nos ouvindo, está em terra indígena — disse Simon, que elogiou os sobreviventes dos internatos católicos que foram ouvir o Papa "com os corações e mentes abertos, alguns dispostos a perdoar e outros ainda vivendo com dor, mas todos dispostos a ouvir". — A visita foi um passo importante para um diálogo maior e ações que levem a uma verdadeira reconciliação.
O pedido de desculpas de Francisco foi classificado como histórico em muitos aspectos, mas há algumas lacunas, de acordo com o ministro de Relações Indígenas da Coroa, Marc Miller. Em primeiro lugar, o Papa não mencionou os abusos sexuais em seus comentários. Além disso, Francisco criticou o “mal” cometido pelos cristãos, mas não pela Igreja Católica como instituição.
Cindy Dearhead, uma mulher das Primeiras Nações que estudou em uma das escolas, considerou que o pedido de desculpas do Papa foi "importante".
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— Demorou muito a chegar, mas finalmente um Papa está reconhecendo 'sim, e sinto muito' — disse Dearhead à AFP no lago Sainte Anne em Alberta, um dos lugares de peregrinação mais importantes da América do Norte, que o Papa visitou na terça-feira.
Para muitos indígenas, no entanto, ainda há muito trabalho a ser feito e a mudança dependerá do que virá a seguir.
— Acho que o pedido de desculpas faz parte do processo de reconciliação. Para mim, as ações que precisam ser tomadas são muito importantes — comentou Peter Powder, chefe das Primeiras Nações Mikisew Cree.
Assimilação forçada
Nesta quinta, Francisco ainda irá à Catedral de Notre-Dame, na cidade de Quebec, para fazer uma homilia. Na sexta-feira, viajará para o arquipélago ártico de Nunavut, onde visitará a cidade de Iqaluit, última etapa de sua visita de seis dias. O Papa, que tem sofrido de dores no joelho, desloca-se frequentemente numa cadeira de rodas.
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O debate sobre o impacto das escolas sobre os povos indígenas canadenses é tema recorrente no país nas últimas décadas: os internatos eram obrigatórios para os jovens dos povos originários e faziam parte de uma estratégia de assimilação forçada, na qual os alunos eram afastados de suas famílias, idiomas e culturas, e sofriam todo tipo de abuso, incluindo estupros.
Estima-se que até 150 mil crianças e jovens tenham frequentado esses internatos entre as décadas de 1880 e 1990, e a Comissão da Verdade e Reconciliação apontou que até seis mil alunos teriam morrido. Os locais recebiam verba do Estado para funcionar, e 70% deles eram administrados pela Igreja Católica — a última dessas escolas fechou em 1996.
Em abril, o Papa fez um pedido de desculpas a lideranças indígenas no Vaticano, dizendo sentir “dor e vergonha pelo papel que muitos católicos” tiveram nos abusos cometidos ao longo das décadas em que as escolas estiveram em funcionamento.
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