A presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, a deputada Nancy Pelosi, deve partir nesta sexta em viagem para a Ásia, sem confirmar oficialmente se pretende mesmo visitar Taiwan, a ilha autogovernada que a China considera parte do seu território. Publicada originalmente pelo jornal Financial Times na semana passada, a notícia da visita, que seria a primeira de alguém no seu cargo a Taipé em 25 anos, provocou a mais recente crise entre Washington e Pequim, e é vista com receio mesmo dentro do governo americano.
- Marcelo Ninio: Visita de Pelosi a Taiwan põe em risco status quo entre China e EUA
- Choque de potências: ‘Se brincar com fogo, vai se queimar’, diz Xi a Biden sobre Taiwan
Se Pelosi for a Taiwan, pouco se sabe quais seriam seus objetivos — oficialmente, até o momento, ela vai a Japão, Indonésia e Cingapura.
A deputada de 82 anos que transformou as posições duras sobre a China em uma constante dos seus mandatos é veterana no Capitólio: desde 1987, foi reeleita 16 vezes — as disputas para a Câmara nos EUA ocorrem a cada dois anos. Ela ocupa a Presidência da Casa desde 2019, função que exerceu também entre 2007 e 2011. Entre 2011, quando os republicanos controlavam a Câmara, foi líder da minoria democrata.
Pelosi esteve à frente dos dois processos de impeachment contra Donald Trump, que em ambos os casos foi inocentado pelo Senado, e chegou a rasgar o discurso sobre o Estado da União do republicano em 2020.
Em seus mandatos, se destacou em discussões sobre a política externa americana, votando contra a invasão do Iraque em 2003, expressando sua oposição ao embargo a Cuba nos moldes atuais e defendendo o acordo sobre o programa nuclear do Irã, firmado por Barack Obama em 2015, mas rasgado por Donald Trump em 2018. Pelosi é uma das poucas congressistas americanas a ter visitado a Coreia do Norte, em agosto de 1997, e frequentemente critica as ações de Pyongyang para aumentar seu arsenal nuclear.
- Disputa por influência: China entrega aos EUA proposta para coexistência no Pacífico
Mas poucos países recebem tanta atenção da democrata como a China. Em 1989, pouco depois do Massacre da Praça da Paz Celestial, quando protestos contra o governo foram reprimidos pelas autoridades, Pelosi foi uma das defensoras de uma resolução da Câmara, aprovada por unanimidade, condenando as ações de Pequim. A decisão do então presidente, George H.W. Bush, de vetar o texto, citando preocupações com os estudantes chineses nos EUA, provocou um embate com a Casa Branca.
Dois anos depois do massacre, Pelosi integrou uma delegação do Congresso que visitou a China e protagonizou um confuso incidente diplomático: ao lado dos deputados Ben Jones, democrata, e John Miller, republicano, escapou da vigilância dos chineses e seguiu até a Praça da Paz Celestial, onde estendeu um cartaz em homenagem “àqueles que morreram pela democracia na China”.
— Nos disseram por dois dias que não havia qualquer proibição à liberdade de expressão na China — disse na ocasião ao jornal Baltimore Sun. — A Praça da Paz Celestial é como um ímã para nós. Não há como vir até aqui [Pequim] e não ser arrastado até a praça.
Em artigo nesta semana na revista Foreign Policy, Mike Chinoy, então chefe do escritório da CNN na capital chinesa, contou que, ao acompanhar o ato protagonizado por Pelosi, foi detido pela polícia, ao lado de outros jornalistas. “Aquela foi minha primeira experiência com a disposição de Pelosi para realizar gestos grandiosos destinados a atiçar os líderes comunistas da China, sem muita preocupação com as consequências”, escreveu Chinoy, que hoje é pesquisador no Instituto EUA-China da Universidade do Sul da Califórnia, e está baseado em Taipé.
Pelosi passou a ser considerada persona non grata por Pequim, e pareceu não se importar com isso — por vezes, enfrentou seu próprio partido para fazer valer sua posição.
No final dos anos 1990, foi contra a aproximação com Pequim promovida pelo então presidente Bill Clinton, que tinha como principal objetivo expandir as relações comerciais. Para ela, era necessário obter compromissos democráticos da China para avançar nesse tipo de relação.
Em 2009, se aliou aos republicanos (e alguns democratas) para afundar a indicação do embaixador Chas Freeman para a chefia do Conselho de Inteligência Nacional. Como relatou a revista Newsweek, ela considerou que alguns comentários de Freeman sobre o Massacre da Praça da Paz Celestial pareciam “justificar” a repressão. A indicação acabou removida, uma derrota embaraçosa para Obama, um presidente que não havia completado nem sequer um ano na Casa Branca.
Já no século XXI, a deputada foi uma das vozes mais ativas na defesa do boicote aos Jogos Olímpicos de Verão, em 2008, e de Inverno, em 2022, na capital chinesa. Ela ainda apoiou os movimentos de oposição em Hong Kong, e recebeu ativistas em Washington em 2019, algo que enfureceu Pequim: o então porta-voz da Chancelaria chinesa, Geng Shuang, disse que o apoio de Pelosi “dava poder a forças radicais e violentas” na cidade.
Apesar de seu passado de confronto com Pequim, as razões por trás da potencial visita não são claras: hoje, as relações entre China e EUA estão em um estado preocupante, e Taiwan é tema central dessa disputa. Biden e seus assessores não parecem dispostos a pôr mais gasolina em uma situação já tensa, mas Pelosi não parece estar na mesma sintonia.
“A intenção dela de demonstrar apoio a Taiwan é óbvia, mas suas atividades não parecem estar ligadas a uma ação estratégica mais ampla, como unir os aliados dos EUA em uma coordenação mais próxima para conter a ameaça da China, ou encorajar Taiwan a melhorar suas capacidades de defesa, aprendendo lições com a invasão russa da Ucrânia”, escreveu Chinoy, na Foreign Policy. “Mas como a resposta confusa da Casa Branca mostrou, não parece haver muita comunicação ou coordenação ali, e Pequim parece disposta a ler [a viagem] como um plano conspiratório.”
Inscreva-se na Newsletter: Guga Chacra, de Beirute a NY