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Por Thayz Guimarães, O Globo

Cinco grandes regiões, 54 países, dois territórios contestados, mais de 2 mil idiomas e 1,4 bilhão de pessoas integram o continente africano. Mas, passados mais de cinco séculos desde a descoberta pelos portugueses de uma tempestuosa rota de navegação para as Índias que dobrava o Cabo da Boa Esperança, “navegar” pela África ainda é um “exercício de extrema complexidade para aqueles educados no mundo ocidental”, que insiste numa visão “caricata e generalista” de seus povos, defende Kauê Lopes dos Santos, geógrafo e autor de “Africano: uma introdução ao continente”.

O livro, lançado em julho pela editora Record, descortina uma África que, segundo o professor colaborador da Unicamp e pesquisador visitante da London School of Economics, foge dos clichês repetidos pela indústria cultural e também pelos meios de comunicação: a África da “natureza selvagem”, com suas savanas, florestas, desertos, rios e lagos inexplorados; da “cultura exótica”, com suas práticas religiosas “estranhas”, hábitos alimentares “curiosos”, danças “sensuais” e línguas “impronunciáveis” para o universo latino e anglo-saxão; e da tragédia humana, tomada por corrupção, autoritarismo, violência, fome e crises sanitárias.

 O geógrafo brasileiro Kauê Lopes dos Santos em viagem ao Egito — Foto: Acervo pessoal
O geógrafo brasileiro Kauê Lopes dos Santos em viagem ao Egito — Foto: Acervo pessoal

‘Afro-otimismo’

Ao contrário, Lopes do Santos investe no clima de “afro-otimismo” experimentado por diversas economias no século XXI, incluindo as de Etiópia, Gana, Quênia, Moçambique, Nigéria e África do Sul. São países que, diz ele, apresentaram elevadas taxas de crescimento econômico; um encaminhamento sólido e vigoroso para a estabilidade e democratização de seus regimes políticos; a criação de um ambiente de negócios mais atraente para o capital privado nacional e estrangeiro; e a implantação de um conjunto de políticas de desenvolvimento para estimular e diversificar a economia.

— É preciso superar o didatismo que trata da África em escala continental — afirma o autor. — Não é negar que existam pobreza, autocracias, áreas pouco exploradas ou culturas que são difíceis de ler através da perspectiva ocidental, mas entender que a África é um mosaico formado por muitas realidades socioespaciais dinâmicas e, por isso, uma leitura particularizada de uma unidade político-administrativa e de sua sociedade e relações é muito mais crível. A Costa do Marfim é uma coisa, a Somália é outra.

Pluralidade é a norma

O falso entendimento de que a África é culturalmente homogênea — o que o filósofo do Benin Paulo Hountondji chama de “unanismo” na obra “Sur la philosophie africaine” (“Sobre a filosofia africana”, em tradução literal), de 1976 — remete à visão idealizada a partir da colonização europeia em fins do século XIX. No entanto, apesar de equivocada e danosa ainda, a ideia contribuiu para a formação de Estados nacionais em meio aos processos de independência no continente.

A ideia de nacionalismo nos países da África é posterior à demarcação territorial imposta pelas metrópoles europeias a partir de 1888 e foi forjada a partir das “violências da experiência colonial”, afirma Lopes dos Santos. Segundo ele, em meados do século XX, diferentes povos e sociedades que habitavam uma mesma colônia, ainda que fossem rivais históricos, se viram obrigados a criar uma ideia de nação em função de um inimigo estrangeiro comum.

— O ganês teve que se reconhecer como ganês independentemente de ser de origem axante, euê ou twi, porque ele precisava combater o britânico, e nenhum desses povos sozinhos seria capaz de derrotá-lo — comenta Lopes dos Santos. — Foi preciso um arranjo nacional baseado em uma identidade pluriétnica para pôr fim à violência do processo colonial a que todos eles eram submetidos.

O autor cita como mais um exemplo da complexidade dos territórios africanos a variedade de regimes políticos que vingaram desses arranjos: dos 54 países, 14 figuram como polos democráticos; 14 estão em processo de democratização; outros 17 podem ser classificados como regimes híbridos, em que o pluralismo político é limitado e a repressão política é frequentes; cinco são inquestionavelmente autoritários; e quatro estão em regime de transição, encontrando-se em estado de conflito ou pós-conflito.

“Africano: uma introdução ao continente” também joga luz sobre o modernismo das grandes cidades africanas, especialmente capitais como Adis Abeba, em que se destacam o Aeroporto Internacional de Bole e o light rail, um sistema de transporte rápido sobre trilhos, inaugurado em 2015, que conecta o centro às zonas industriais, nas periferias; ou Nairóbi, cujos arranha-céus abrigam as sedes de importantes empresas quenianas, africanas e de outros continentes, e tornaram-se um explorado cartão-postal do país. Sem falar do luxuoso setor hoteleiro da Cidade do Cabo, dos shopping centers de Lagos, do estratégico porto do Djibuti ou do Museu das Civilizações Negras, em Dacar.

Cultura urbana

O livro relata, ainda, a efervescência cultural urbana, representada pela indústria cinematográfica nigeriana, conhecida como Nollywood, que está entre as três maiores produtoras de filmes do mundo, junto à indiana Bollywood e à americana Hollywood; pela música pop do rapper nigeriano Burna Boy, cuja faixa “Anybody” foi parar na famosa lista de melhores do ano do ex-presidente Barack Obama; ou pelo escultor ganês El Anatsui, internacionalmente aclamado.

Faz isso, porém, enquanto mostra como a precariedade da infraestrutura e a distribuição desigual das riquezas continuam sendo os principais entraves para o desenvolvimento da maioria dos países.

Com pouco mais de 150 páginas, o livro de Kauê Lopes do Santos cumpre o objetivo didático — servir como uma introdução ao continente africano no século XXI — sem deixar de ser instigante. Isso acontece, por exemplo, quando apresenta Gamal, um homem de seus 60 anos que passou metade da vida trabalhando como motorista e guia turístico na capital egípcia (“e narra como ninguém as histórias dessa ‘terra única’”) ou conta suas conversas com Kojo, um taxista de Acra, capaz de falar por quase meia hora seguida “sobre todos os assuntos que você possa imaginar”.

Visando a um leitor não iniciado, o autor tenta despertar uma curiosidade genuína sobre como são, de fato, as cidades e sociedades africanas hoje, tal qual fez o motorista Gamal ao guiá-lo pelas ruas do Cairo: “Eu te trouxe aqui para mostrar que o Egito não é apenas uma brilhante sociedade do passado. O Egito é também moderno. Olhe para esse prédio! O século XXI está aqui.

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