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Por Enric González, El País — Londres

Poucos países mudaram tanto como o Reino Unido no último século. O que era o maior império do planeta e uma grande potência industrial é hoje outra coisa, mais difícil de definir, cujo rosto foi se confundindo ao longo dos últimos 70 anos com o da monarca. Elizabeth Alexandra Maria Windsor assistiu ao esfacelamento de sua herança sem qualquer alarido e, de alguma forma, soube ocupar o vazio com sua presença. Sem ela, a monarquia britânica será outra.

Em 2 de junho de 1953, quando foi coroada mais de um ano após a morte de seu pai, as cartas estava sobre a mesa. A independência da Índia, em 1947, foi sangrenta e desordenada. No ano seguinte, a retirada britânica da Palestina abriu um conflito que até hoje segue sem solução. Pela primeira vez em séculos, a cerimônia de coroação não deu à nova chefe de Estado o comando da “Coroa Imperial”, mas sim o vago título de “chefe da Comunidade Britânica”.

Ninguém sabia muito bem o que significava Comunidade Britânica àquela altura. Só uma pessoa foi capaz de desvendar o significado da expressão e dar um sentido a esse fantasma internacional. E esta pessoa, Elizabeth II, não está mais em cena.

A lista de amputações sofridas desde então impressiona: Gana e a Federação Malaia, atual Malásia, tiveram sua independência em 1957. Três anos depois, foi a vez da Nigéria. Em 1961, Serra Leoa e Tanzânia se separaram. Uganda, Jamaica e Trinidad e Tobago se tornaram independentes em 1962, um ano antes do Quênia. Em 1964, foi a vez de Malta e, em 1965, de Gâmbia. Botsuana, Lesoto e Barbados conquistaram suas independências em 1966, dois anos antes das Ilhas Maurício. Em 1976, foi a vez de Seychelles garantir sua independência.

Algum elo continuou, no entanto, apesar de tantas despedidas: uma rara fidelidade à Elizabeth II. Não ao Reino Unido ou à monarquia, mas à rainha.

Morto em 2021, o príncipe Philip, marido da monarca, disse que Elizabeth II não exercia o papel de monarca na Comunidade Britânica, mas de “psicoterapeuta”. A definição é boa para alguém que precisou manejar uma série de novas repúblicas e monarquias locais, várias delas com ditadores brutais e guerras civis. Acolheu até países como Moçambique e Ruanda, que nunca pertenceram ao império britânico.

Os líderes da Comunidade Britânica saíam de seus caminhos para alguns minutos de audiência com a monarca que, em teoria, apenas podia ouvi-los — é apenas chefe de Estado, vetada de intervir em questões de governo. Era o fascínio pela figura da rainha, mas também era outra coisa: na prática, Elizabeth II fazia algo além de escutar.

Dentro de uma margem estreita, e às vezes passando dos limites, tinha um poder paradiplomático único no mundo que usava para defender suas ideias políticas. Eram mais progressistas do que se imagina.

Nunca houve uma Constituição britânica que servisse de guia ou refúgio para Elizabeth II, nem um manual de instruções de como guiar o que ficou conhecido como “17 reinos unidos em uma pessoa só”. Em 1939, seu pai, George VI, estava em guerra com a Alemanha como monarca do Reino Unido, mas mantinha boas relações com a Berlim de Adolf Hitler como rei do Canadá. As complicações que ela precisou enfrentar são ainda maiores.

Há vários exemplos. Em 1956, a então novata rainha foi contra a invasão do Canal de Suez e assinou com relutância a mobilização dos soldados. A hesitação devia-se à sua rede de contatos na Comunidade Britânica e sua amizade pessoal com o então presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, que lhe garantiam melhores informações que o então primeiro-ministro Anthony Eden. A monarca precisou engolir o fiasco da retirada.

Na década seguinte, a monarca uniu forças com o primeiro-ministro Harold Wilson para impedir a independência da Rodésia, atual Zimbábue, e prolongar o apartheid no país. Ian Smith, então primeiro-ministro rodesiano, não deixava de proclamar seu amor e lealdade à monarca: ela o respondia vez ou outra com demonstrações de desprezo. A segregação racial no país acabou caindo.

Naquela época, Dermot Morrah, famoso editorialista do The Times e redator de discursos reais, já havia decidido que a monarquia britânica era sustentada quase exclusivamente pelo prestígio pessoal da monarca. Ela, sua Comunidade Britânica e o centro financeiro londrino, que representa 12% da economia do país, formavam o chamado “império espiritual”, com uma órbita de influência de alcance planetário.

Costuma-se dizer que as relações entre Elizabeth II e Margaret Thatcher eram frias. Mantinham, na realidade, um confronto político contínuo porque Elizabeth II fazia política. Quando vestia o traje de rainha britânica, era o governo de Londres que punha palavras em sua boca. Quando vestia a coroa de rainha da Comunidade Britânica, era ela quem falava.

Desde o final dos anos 1980, a rainha usava cada reunião de seu “clube internacional” para advertir sobre os riscos das crescentes desigualdades socioeconômicas no mundo. Para Thatcher, isso soava um pouco como socialismo.

O pior choque entre as duas foi em 1986: a Comunidade Britânica exigia sanções contra a África do Sul pelo apartheid. Thatcher negava-se com contundência, priorizando as relações com o país. Além disso, via o então preso Nelson Mandela como um terrorista. A rainha, por sua vez, mantinha comunicação indireta com o líder negro.

Dez anos depois, já sem Thatcher, Elizabeth II deu a Mandela tratamento de honra em sua primeira viagem oficial a Londres, hospedando-o no Palácio de Buckingham. Além disso, o acompanhou por todo canto e, principalmente, permitiu que o líder sul-africano a chamasse de “Lizzie”.

Outra frente de tensão política entre a monarquia e o governo teve início em 1961, quando Downing Street decidiu pedir seu ingresso nas instituições europeias. Os principais líderes da Commonwealth se queixaram à Elizabeth II, afirmando que isso anularia os tratados preferenciais que tinham com o Reino Unido. O então presidente francês, Charles De Gaulle, vetou a adesão britânica e adiou o problema por uma década.

Uma boa parte dos súditos de Elizabeth II, contudo, sempre se opôs ao ingresso no mercado comum europeu. Temiam perder sua independência, representada principalmente pela rainha. Como os sucessivos governos em Londres, a monarca se viu obrigada a equilibrar as demandas.

O que ela pensava sobre a participação britânica na União Europeia? Elizabeth II nunca disse nada em público. Talvez nem em privado tenha expressado suas opiniões, mas se permitiu lançar uma mensagem codificada. Em 2017, no ano seguinte ao referendo em que os britânicos votaram no referendo pelo divórcio de Bruxelas, abriu a sessão do Parlamento com um chapéu que nunca antes havia usado: era azul e amarelo, igual à bandeira da UE.

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