De volta para reassumir a Embaixada da Argentina em Brasília, dois meses depois de deixar o posto que já havia ocupado durante quase dois anos, Daniel Scioli trouxe na mala um ambicioso plano de integração entre os dois países, que prevê parcerias nas áreas financeira, comercial, de energia, gás, infraestrutura, mineração e turística. Ele compara esse acordo a momentos históricos das relações bilaterais, como quando os ex-presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín deram o pontapé inicial, na década de 1980, para a criação do Mercosul.
O clima pouco amistoso nas relações entre o brasileiro Jair Bolsonaro e o argentino Alberto Fernández não assusta Scioli, político peronista experiente, que já foi parlamentar, vice-presidente, governador de Buenos Aires e candidato à Presidência. O embaixador tem como mérito o fato de ter conseguido driblar essas dificuldades e resolver pendências em sua passagem anterior por Brasília, com direito a bolo de aniversário no Palácio do Planalto, um presente do presidente quando completou um ano no posto, em agosto do ano passado.
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Ao GLOBO, Daniel Scioli disse ter falado sobre o plano de integração a integrantes das equipes de Bolsonaro de Lula. Afirmou que a proposta é uma política de Estado, e não de governo, ao ser perguntado sobre o favorito da Argentina na eleição do próximo domingo. Mas lembrou que Fernández e Lula são amigos e têm grande afinidade.
O senhor deixou a embaixada para assumir um ministério em Buenos Aires e reassumiu o posto em Brasília em pouquíssimo tempo. Como foi isso?
O presidente Alberto Fernández me ligou uma noite dizendo que tinha uma emergência dentro do governo. Falou sobre minha experiência e da necessidade de apoio do mundo empresarial ao Ministério do Desenvolvimento Produtivo. Cheguei em um momento muito delicado do ponto de vista econômico, muita instabilidade cambial e muitas tensões políticas internas. Depois de uma reunião com o presidente e a vice Cristina Kirchner, tomou-se a decisão de reorganizar o governo. Porém, após esse momento muito crítico, agradeci ao presidente e disse que, como ainda não havia um novo embaixador, eu poderia ajudar muito em uma segunda etapa, com um plano muito claro de integração profunda com o Brasil, diante de uma crise global. Podemos fortalecer a região e, especialmente, a relação com o Brasil nas áreas financeira, energética, alimentar, turística, entre tantas outras. Também conversei sobre isso com nosso chanceler, o ministro da Economia e outros membros do governo. Então, foi organizada toda a burocracia e o governo do Brasil deu o sinal verde rapidamente. O Senado argentino também foi muito rápido na tramitação do meu nome.
Como seria consolidada essa integração profunda?
Podemos concretizar esse grande acordo da mesma forma que ocorreu em outros momentos históricos na relação entre Brasil e Argentina, como nos casos de Raúl Alfonsín e José Sarney e Lula e Néstor Kirchner. Creio que, respeitando a vontade do povo brasileiro, podemos ter um grande acordo de integração.
O senhor divide sua gestão como embaixador em duas etapas?
Sim. A primeira fase foi de reconstrução da relação bilateral, em que o Brasil voltou a ser o sócio comercial número um da Argentina. Antes, não havia diálogo entre as autoridades. Criamos 14 câmaras de indústria e comércio binacionais e resolvemos conflitos agrícolas. Após dois anos de trabalho como embaixador no Brasil, estou convencido que a nova configuração do cenário internacional nos apresenta uma oportunidade histórica para desenhar um renovado acordo de integração bilateral de maior profundidade, dotado de uma visão desenvolvimentista progressista que permita potencializar as nossas capacidades para trabalhar naquilo que o mundo demanda. Hoje, estamos diante de um novo contexto. A crise da globalização requer fortalecer a regionalização, e o impacto da pandemia, a guerra na Ucrânia e a demanda mundial por alimentos e energia nos chamam a refletir sobre a nossa estratégia de inserção regional e internacional. Quando falamos nesses termos, devemos partir do nosso vínculo com o Brasil como eixo central.
Como estão, hoje, os projetos de integração?
A Argentina exportou energia elétrica para o Brasil, atingido pela seca, e, quando a Argentina passou pelo problema do aumento do gás por causa da guerra, o Brasil ajudou a prover toda a energia elétrica de que precisávamos. Não houve cortes de energia e pudemos evitar um racionamento. Agora, estamos trabalhando no projeto que levará gás natural da reserva de Vaca Muerta para o Sul do Brasil. Além disso, há reuniões entre os bancos centrais dos dois países para fortalecermos o comércio em moedas locais, com compensação de 90 dias, e não diariamente, como é hoje. Nos próximos dias, virão ao Brasil três governadores, de Mendonza, Neuquén e Chubut. Há diálogos pragmáticos em várias áreas, como agricultura, indústria nacional, automóveis, indústria farmacêutica, integração digital e telecomunicações.
Vale a pena conversar sobre um novo plano de integração profunda a poucos dias das eleições no Brasil?
Estou falando de uma política de Estado. O Mercosul completou 30 anos e passou por vários governos. Como embaixador da Argentina no Brasil, defendo uma integração mais profunda, porque todos os pontos são de interesse dos dois países e, apesar das diferenças políticas e ideológicas, temos feito um grande progresso. Com o Brasil, temos a responsabilidade e o compromisso, neste tempo de crise da globalização, de trabalhar para fortalecer a região.
O presidente Jair Bolsonaro costuma usar a crise política na Argentina a favor de sua campanha. Isso não incomoda?
Eu disse ao presidente Bolsonaro que ele está equivocado ao dizer que o governo argentino é comunista. Há controvérsias e declarações públicas de um lado e do outro. Tomo isso como questões de campanha. Outro exemplo é o populismo. O auxílio emergencial é uma boa ajuda aos setores mais vulneráveis e a Argentina tem um programa também, para que o Estado possa assistir as pessoas. Antes de vir para o Brasil, estudei profundamente a história de nossas relações e conversei com todos os que foram embaixadores aqui. Fui governador duas vezes, vice-presidente, deputado, ministro. Se estou aqui, é porque quero fazer uma grande coisa a serviço do meu país e do Brasil.
Para o governo argentino, é melhor a vitória de Lula ou Bolsonaro?
Todos conhecem muito bem a afinidade pessoal e política entre o presidente argentino e sua vice com Lula. Existe um sentimento de gratidão de Lula, quando Alberto Fernández o visitou na prisão e sempre disse acreditar em sua inocência. E eu também sou grato a Lula, porque ele fez campanha para mim em 2015, quando eu era candidato à Presidência. Mas, desde que cheguei aqui, penso em construir a melhor relação possível com o governo e a isso me dediquei. Agradeço muito por terem me ajudado. O governo Bolsonaro facilitou meu acesso a todas as áreas. Juntos, somos mais fortes.
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