Mundo
PUBLICIDADE

Por Vivian Oswald, especial para O Globo — Londres

O chamado Black Country — berço da Revolução Industrial na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX— tem esse nome por causa da poluição que as minas de carvão e fábricas produziam sem cessar em tempos de pujança. Hoje é área deprimida, com indicadores sociais aquém do restante do país. A taxa de desemprego fica acima da média nacional. Nos últimos anos, centenas de lojas fecharam as portas, e os imóveis seguem vazios. Marcas conhecidas deixaram algumas cidades. Multiplicam-se estabelecimentos de comércio voltados para quem anda com o dinheiro contado. A tensão racial é um componente adicional, nesta região onde há mais não brancos do que na média do reino. Há partes da cidade de Birmingham, por exemplo, onde dois terços das crianças vivem em situação de pobreza.

Reduto do Partido Trabalhista por décadas, a região deu uma vitória retumbante nas eleições gerais de 2019 aos conservadores liderados pelo carisma de Boris Johnson, que abocanharam 10 dos seus 13 assentos no Parlamento. Esses mesmos eleitores estão longe de se ver refletidos nas fileiras do partido que anuncia amanhã o nome do seu novo líder e primeiro-ministro.

São parte de um Reino Unido cada vez mais desigual, à beira da estagflação, tentando se entender com as consequências nefastas do Brexit e com pressões separatistas vindas sobretudo da Escócia e da Irlanda do Norte. É este o país com o qual o novo chefe de governo, que ao que tudo indica será a ex-secretária de Relações Exteriores Liz Truss, terá de lidar.

Homens, brancos, idosos

Seu nome terá sido ungido pelos cerca de 160 mil filiados da legenda, pessoas que não foram eleitas pelo voto popular. Não são deputados conservadores com assento no Parlamento — esses escolheram o ex-xerife do Tesouro Rishi Sunak nas rodadas de votação anteriores.

Em contraste com a ampla diversidade de candidatos que entraram na disputa por Downing Street, os militantes da base conservadora são majoritariamente homens (quase dois terços), brancos (96%) e de idade avançada, como mostra o perfil do eleitorado conservador, segundo o Projeto de Membros do Partido (PMP), uma pesquisa da Universidade de Sussex de 2020. Mais de 39% têm mais de 65 anos e um quinto, entre 50 e 64 anos, enquanto menos de 20% da população do Reino Unido tem 65 anos ou mais, de acordo com o Escritório Nacional de Estatísticas.

O Reino Unido é uma democracia parlamentar. O líder da maioria se torna o chefe de governo, sem a obrigação de organizar eleições legislativas no caso de uma mudança de liderança no meio do mandato, como aconteceu. Boris Johnson se viu obrigado a renunciar após uma sucessão de escândalos em seu governo. Sob este processo, menos de 0,3% da população de 66 milhões de habitantes do Reino Unido tem o poder de apontar seu próximo líder.

Os membros do Partido Conservador também são mais ricos que o eleitorado em geral. Estima-se que 80% pertençam às classes sociais média e alta, em comparação a 57% dos britânicos, segundo dados do instituto YouGov. Também se concentram em grande parte no Sul da Inglaterra, mais abastada, onde vive pouco mais de um terço da população total, particularmente em Londres. Apenas um quinto vive no Norte da Inglaterra e 6%, na Escócia.

O Black Country fica nas Midlands, região ao centro, onde as pessoas se sentem, mais do que em outras partes do país, abandonadas em vista da disparada do custo de vida, movida pela inflação em dois dígitos — a mais alta dos últimos 40 anos. Segundo o banco americano Goldman Sachs, os índices de preços ao consumidor podem bater os 22% no ano que vem, aproximando-se do recorde do pós-guerra, no ano de 1975.

'Pobreza energética'

As companhias de energia já avisaram que o novo reajuste, previsto para outubro, será de cerca de 80%. Somando-se às anteriores, a alta terá chegado a quase 300%, em média, em dois anos.

— Não tenho como pagar essa conta. Não vou tirar do prato dos meus dois filhos, que também está cada vez mais caro. Vim no final para ver se pego mais descontos — disse Assam, 34 anos, na saída da feira da praça principal da cidade de Dudley, nas Midlands, acompanhado da mulher.

Estima-se que a "pobreza energética" atinja 9,1 milhões de lares no Reino Unido a partir de outubro, segundo dados da ONG End Fuel Poverty. O conceito, segundo a entidade, se refere a famílias que gastam mais de 10% do que ganham com energia e não têm como bancar os custos de um padrão de vida adequado.

— Políticos, por natureza, não têm noção da realidade. Deveriam viajar mais pelo país. Isso aqui é muito real para mim. A conta do supermercado também — afirma a jovem Lanisha, de 28 anos.

Essa é uma Inglaterra que poucos veem fora de Londres. Mesmo na capital, a situação é visivelmente mais difícil. As filas nos bancos de alimentos, que estão tendo de recusar pessoas, são imensas. Destoam das filas não muito distantes dos espectadores sorridentes e bem vestidos que frequentam os tradicionais teatros da cidade.

O primeiro-ministro que ocupará a partir desta semana a residência oficial tem o desafio de governar para todos esses reinos, e buscar resultados que permitam que seu Partido Conservador esteja em condições de disputar as eleições gerais de maio de 2024, estas sim marcadas pelo voto popular. Se o pleito fosse hoje, os trabalhistas teriam vitória folgada por 10 pontos percentuais. Somado à crise, os britânicos em geral devem manifestar um cansaço natural em relação à sigla, que, até lá, estará no poder por 14 anos.

Nem SUS britânico escapa

No Black Country, onde alguns deputados conservadores tiveram mais do que o dobro dos votos de seus oponentes trabalhistas em 2019, manter os assentos conquistados será tarefa ainda mais complicada. As condições são muito mais adversas: além dos efeitos da guerra na Ucrânia e do Brexit, há uma crise do Sistema Nacional de Saúde (NHS).

Médicos questionam a aplicação da quarta dose da vacina da Covid por falta de funcionários, e enfermeiros ameaçam entrar em greve. A população começa a recorrer a planos de saúde privada que vão surgindo neste país em que o sistema nacional gratuito, que inspirou o SUS no Brasil, é o que se conhece como o mais próximo de uma religião. As greves de trens, metrô, correios, coletores de lixa, advogados criminalistas, enfermeiros e outros começam a lembrar décadas passadas.

Boris Johnson deixará Downing Street em direção a Balmoral, na Escócia, onde entrega sua carta de renúncia à rainha Elizabeth II. Seu substituto também viaja para se apresentar à monarca, que, aos 96 anos, de férias e com problemas de mobilidade, pela primeira vez em sete décadas de reinado não receberá o chefe de governo que sai e o que chega no Palácio de Buckingham, em Londres.

Mais recente Próxima

Inscreva-se na Newsletter: Guga Chacra, de Beirute a NY

Mais do Globo

Quais são as marcas e as técnicas que procuram diminuir o impacto negativo sobre o meio ambiente da roupa mais democrática do planeta

Conheça alternativas para tornar a produção do jeans mais sustentável

Fotógrafos relatam como foi o processo de concepção das imagens em cartaz na Casa Firjan, em Botafogo

Lavadeira, barbeiro, calceteiro: exposição de fotos em Botafogo enfoca profissões em extinção

‘Queremos criar o museu do theatro’ revela Clara Paulino, presidente do Theatro Municipal

Theatro Municipal pode ganhar museu para expor parte do seu acervo de 70 mil itens

A treinadora da seleção feminina brasileira usou da psicologia e de toda sua experiência para deixar a estreante o mais tranquila possível

Entenda estratégia da técnica Sarah Menezes para Bia Souza vencer  Olimpíada em Paris

Ainda há chances de medalha: se passar da Sérvia, irá disputar o bronze

Olimpíadas de Paris: equipe brasileira do judô perde nas quartas de final e vai à repescagem