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Por Gabriela García, Especial Para O GLOBO — Santiago

“Aconteça o que acontecer em 4 de setembro, o Chile já mudou”, disse o vice-presidente da Convenção Constitucional, Gaspar Domínguez, em 4 de julho. Naquele dia, este médico rural, junto com os outros 153 constituintes que redigiram a primeira Carta do país nascida na democracia, entregaram ao presidente Gabriel Boric a proposta em que trabalharam durante um ano, e que no próximo domingo deverá ser aprovada ou rejeitada em plebiscito.

É o primeiro projeto constitucional do mundo escrito por um organismo paritário, com perspectiva de gênero e cadeiras reservadas aos indígenas. Suas primeiras linhas definem o Chile como um “Estado social e democrático de direito”, além de “plurinacional, intercultural, regional e ecológico”.

Parece contraditório, mas o texto nascido de um processo apoiado por praticamente 80% da população chilena em outro plebiscito, em 2020, que decidiu substituir a Constituição herdada da ditadura por uma escrita por uma Convenção Constitucional eleita, que por sua vez aprovou seus 388 artigos pelo quórum de dois terços, hoje é rejeitado por 46% dos eleitores chilenos, segundo as pesquisas.

As razões que explicam essa virada são muitas, segundo os especialistas. Estariam relacionadas à baixa aprovação do governo de Boric — um dos signatários do Acordo pela Paz e a Nova Constituição em 15 de novembro de 2019 — e também à avaliação do processo constituinte em si.

Para os partidários da rejeição, que incluem os partidos da direita, mas também políticos da antiga Concertação como o ex-presidente Eduardo Frei, a Convenção desperdiçou a oportunidade de fazer um texto sólido que convença a maioria. Para os 37% que aprovam o projeto, sua promulgação é um ponto de partida para o que de fato está em jogo: o início de um novo ciclo político, social e cultural.

Sebastián Soto, advogado e professor de Direito da Universidade Católica que participou ativamente do debate constitucional e integrou a mesa técnica que deu forma ao Acordo pela Paz e a Nova Constituição, votou por uma nova Carta no plebiscito de 2020, mas hoje olha o processo com decepção.

— Uma das aspirações que muitos tínhamos era que a Convenção nos propusesse uma nova forma de fazer política, de deliberar: menos polarizada, que deixasse para trás a lógica do amigo versus inimigo. Infelizmente isso não aconteceu. A Convenção nos fez retroceder e gerou mais incerteza e distância entre nós. Não foi só uma oportunidade perdida, mas em um ano nossa convivência se deteriorou — diz ele.

Do seu lado, Claudia Heiss, chefe da cátedra de Ciência Política da Faculdade de Governo da Universidade do Chile e que também integrou a comissão técnica para o processo constituinte, acredita que esse período esteve marcado por tensões que demonstram que é “mais fácil haver acordo sobre o que não gostamos do que concordar com o que queremos”. Mas ela afirma que a nova Carta cumpre o papel de oferecer aos chilenos um futuro melhor:

— Não significa que automaticamente resolva todos os problemas, mas acredito que, se for aprovada, o cenário é melhor para promover reformas muito mais progressistas que estejam em sintonia com a explosão social e com o triunfo de Gabriel Boric na eleição presidencial.

Para Heiss, dois eixos de mudança do ciclo político detonados pelos protestos de 2019 — e que vinham se acumulando nos movimentos estudantis de 2006 e 2011 e a mobilização feminista de 2018 — são a compreensão dos direitos sociais como deveres coletivos e a inclusão política de setores historicamente marginalizados dos espaços de representação de poder, como mulheres e povos indígenas.

— Estes elementos que a Constituição de 1980 bloqueou se consagram como ponto de partida dessa nova proposta — afirmou.

Para Heiss, o medo é inerente à transformação que o Chile está vivendo, e fez com que as fake news tivessem um papel central.

— É uma campanha com muitos recursos que se valeu da desinformação e das interpretações distorcidas sobre as consequências que o texto teria para mobilizar o voto de rejeição.

De todas as doações privadas para a campanha do plebiscito registradas pelo Serviço Eleitoral, 90% vêm dos opositores do projeto. A cientista política chama atenção para expressões com a que os defensores da rejeição se referem ao texto, que chamam de “antipropriedade privada” e “anticapitalista”, além de associá-lo ao autoritarismo e ao modelo chavista, “coisas que a maioria dos chilenos rejeita e que não estão no projeto”.

Além dos que já decidiram pela aprovação ou rejeição, há cerca de 17% de indecisos que podem inclinar a balança para um lado ou outro, já que o voto será obrigatório.

Para o professor Sebastián Soto, a proposta de Constituição provoca tantas controvérsias que é difícil apontar uma só:

— São tantos os temas em que a Convenção rompeu com a tradição constitucional chilena e com o constitucionalismo global que é a soma deles, junto com o contexto em que se deu o debate, que gera desconfiança.

Segundo ele, o texto deixa “muitos espaços para o germe do populismo” e “não resolve os problemas mais importantes para a governabilidade”.

— O sistema político continuará travado e as expectativas crescerão, pois há um catálogo de direitos enorme que chama de direito todo tipo de aspiração. Esses dois fatores juntos são sempre problemáticos e a proposta os exacerba.

Moradia, aborto e direitos indígenas

Entre as dúvidas da cidadania está a consagração do direito à moradia digna no projeto constitucional. A proposta estabelece que “o Estado tomará as medidas necessárias para assegurar seu gozo universal e oportuno” e que poderá “participar do desenho, da construção, da reabilitação, da conservação e da inovação da moradia”, desenhando políticas e garantindo a disponibilidade da terra para esse efeito”.

— É um dos temas que mais toca as famílias porque a casa própria é sua principal aspiração de posse material — disse Heiss. — Foram difundidas mentiras flagrantes, como se o direito à moradia significasse que vão expropriar uma segunda casa. Ou que, como não se fala da propriedade da casa e sim do direito universal a ter um teto, os que receberam uma moradia social ou por meio de subsídio deixarão de ser donos delas.

Outro tema que provoca questionamentos é o aborto. O projeto estabelece que “toda pessoa é titular de direitos sexuais e reprodutivos” e que estes incluem, entre outros, “o direito a decidir de forma livre, autônoma e informada sobre o próprio corpo, sobre o exercício da sexualidade, da reprodução, o prazer e a anticoncepção”. O texto prevê que o exercício desses direitos será regulado por lei.

Um líder da rejeição, o senador Felipe Kast, do partido de centro-direita Evópoli, disse que a Convenção permitiu o aborto livre até os nove meses de gravidez. Claudia Heiss esclarece que a “a Constituição não legisla sobre o aborto, e o Congresso poderia até definir que, com a atual lei que prevê o aborto legal em três situações (estupro, risco de vida para a mãe e inviabilidade do feto), o direito já está contemplado”.

Outros dos assuntos debatidos é o sistema de Justiça, principalmente o que estabelece sua relação com “os princípios de plurinacionalidade, pluralismo jurídico e interculturalidade”. A proposta indica que “quando se trata de pessoas indígenas, os tribunais e seus funcionários deverão adotar uma perspectiva intercultural no tratamento e resolução das matérias de sua competência, tomando devidamente em consideração os costumes, as tradições, os protocolos e os sistemas normativos dos povos indígenas, conforme os tratados e instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Chile é parte”.

Para Claudia Heiss, “o que os detratores do texto fizeram foi dizer que, se uma pessoa vai pela estrada e bate num indígena, vão levá-la para os tribunais indígenas, que é abusurdo”.

— A jurisdição indígena está pensada para que voluntariamente as comunidades possam regular internamente aspectos de sua vida comum. Dizer que os indígenas vão ter uma Justiça privilegiada e não vão ser julgados, que vão ter a própria Justiça, é falso.

Ela esclarece que a Constituição dá orientações gerais sobre matérias que serão reguladas por lei pelo Parlamento, que hoje têm 44% de deputados da direita na Câmara e 50% no Senado.

O dia seguinte

Durante o período de funcionamento da Convenção Constitucional, as discussões foram difíceis. Ela foi formada majoritariamente por independentes, membros de organizações sociais, jovens e pessoas dos povos originários, o que deu ao processo um caráter autêntico, houve dificuldade para acordos porque lhes faltava experiência política.

— Foi uma Convenção muito diferente do Congresso ou da política regular. Criou-se uma dinâmica difícil de entender de fora. Houve votações reiterativas e reiteradas porque não era possível gerar consensos, o que foi percebido como uma ausência de lideranças políticas claras e da necessidade de fechar acordos políticos mais transversais — disse Tomás Jordán, advogado, cientista político e professor de Direito Constitucional na Universidade Alberto Hurtado. — Acredito que houve setores de direita mais duros que sempre estiveram contra o texto e uma esquerda mais radical que vetou possibilidades de negociações com os setores mais moderados da direita, o que explicaria por que a Convenção não conseguiu terminar com um acordo mais transversal, politicamente falando. A forma de acordo foi mais por agregação de demandas do que pela substância política.

Se as pesquisas tiverem razão e a rejeição ganhar, não seria tudo em vão. Hoje os setores de direita dizem concordar com a necessidade de uma nova Constituição e defendem uma ideia de Estado que garanta maior proteção social.

— A direita mudou o discurso e está apresentando como princípios próprios o que não foi parte de sua agenda no passado. No fundo diz: “também queremos proteger o meio ambiente, que haja mais direitos sociais, mas não com esse texto”. Os que rejeitam apostam em abrir um novo processo constituinte, mas agora com especialistas na liderança — diz Claudia Heiss.

Para ela, isso seria um desafio num país onde o sistema político carece de legitimidade e os partidos provocam muita resistência:

— Além de um caminho longo, é mais complexo porque nos devolveria à pergunta sobre como produzir as mudanças que a sociedade pediu na explosão de 2019.

Já Soto é menos pessimista:

— Uma vitória da rejeição permitirá iniciar um novo processo que corrija os erros do que termina. O Congresso Nacional e o presidente devem se pôr de acordo com um novo cronograma e um novo acordo político que demonstre que a política quer superar a má experiência destes 12 meses de trabalho da Convenção e que as novas regras evitarão por todos os meios que isso se repita.

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