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Por Marcelo Ninio, especial para O Globo — Pequim

Uma das histórias que a imprensa estatal chinesa cita para ilustrar o amor do presidente Xi Jinping pela literatura é a de que aos 14 anos ele caminhou quase 50 quilômetros só para pegar emprestado uma cópia do “Fausto” de Goethe, o clássico da literatura alemã. Xi vivia o período mais traumático de sua vida, quando seu pai foi vítima da perseguição de Mao Tsé-tung e ele próprio passou por sessões de humilhação pública e foi enviado para uma aldeia no Norte do país para ser “reeducado”.

Neste domingo, o Partido Comunista da China (PCC) dará início a seu 20º Congresso quinquenal e Xi, salvo uma improvável surpresa de última hora, será reconduzido para um terceiro mandato como secretário-geral da sigla, abrindo caminho para repetir o feito inédito na Presidência do país.

É a consolidação do enorme poder acumulado por ele na última década, período em que imprimiu marcas profundas em todas as esferas da China, da economia às Forças Armadas, da educação à política externa, e reformulou o modelo de liderança coletiva que prevalecia desde 1982. Como preparação para o congresso, faixas vermelhas foram penduradas nas pontes de Pequim anunciando “uma nova era”.

‘Patriotismo como musa’

A juventude sofrida e o apreço de Xi pela literatura ocidental são exemplos de como sua biografia enganou os que esperavam uma China mais liberal e aberta ao mundo sob seu comando quando ele chegou ao poder, em 2012. Ocorreu o oposto: uma guinada ideológica que elevou a autoridade do partido e a lealdade a suas diretrizes acima de tudo. Embora longe da antiga idolatria a Mao Tsé-tung, a centralização em torno de Xi reavivou a memória de um passado dominado pelo culto à personalidade e pela disciplina partidária.

Não há estátuas do presidente espalhadas pelo país como na era maoista, mas a voz de Xi é onipresente — e a única que realmente conta.

Em um encontro com artistas, escritores e cineastas um ano após assumir a Presidência, Xi deu o tom do que esperava deles: “o patriotismo como musa”. As palavras ecoaram o famoso discurso de Mao de 1942 na base revolucionária de Yan’an, em que o líder comunista instruiu artistas a servir ao povo e ao partido, diz Megan Walsh, autora de um livro lançado este ano sobre a literatura chinesa atual, “O subenredo — O que a China lê e porque isso importa”.

— Assim como o amor de Mao pela poesia não significou uma cena literária fértil, a chegada ao poder de Xi Jinping também levou a um aumento da pressão — diz Walsh.

A China anterior à era Xi não era exatamente um ambiente convidativo à livre expressão. A imprensa e as manifestações políticas sempre foram controladas pelo Estado, mas abria-se uma margem para discussão que sugeria um relaxamento gradual da sociedade. Nessa atmosfera, o jornalismo vinha seduzindo jovens idealistas atraídos pela chance de testar os limites do “politicamente aceitável” e trazer mudanças, diz Emily Chua, antropóloga especializada em mídia chinesa da Universidade Nacional de Cingapura.

— Em contraste, hoje o jornalismo é visto como um trabalho destinado principalmente a propagar a linha do partido, e por isso tornou-se menos atraente — diz ela.

Debates que não há mais

Na véspera da ascensão de Xi, em 2012, os jornais oficiais publicavam acalorados debates entre a esquerda e a direita do PCC sobre os rumos que o país deveria seguir. Hoje em dia isso é impensável. A música que se ouve tem uma nota só. Tudo se concentra no “pensamento de Xi Jinping”, que foi incluído não só na Constituição, mas também nos currículos escolares. Apesar de negarem que haja um retorno ao culto à personalidade — proibido pelas regras do PCC desde 1982 — defensores do governo argumentam que um líder forte era necessário para salvar o sistema comunista e o país de uma crise existencial.

Quando o partido aprovou sua terceira “resolução histórica” no ano passado, Xi fez uma descrição sombria dos riscos que o país vivia antes de sua ascensão. Segundo ele, “uma governança frouxa permitiu que a inação e a corrupção se espalhassem pelo partido, causando sérios problemas no ambiente político”. A insatisfação popular era também visível. Não era incomum ouvir queixas ao PCC e à corrupção de seus líderes num papo informal com motoristas de táxi de Pequim. O clima agora é outro: cresceu a confiança na liderança, mas também o temor de expor visões críticas.

Para Xi, o único jeito de botar a casa em ordem era restaurar a autoridade do partido e evitar que a China tivesse o mesmo destino da União Soviética — ou, num exemplo da época, dos ditadores derrubados na Primavera Árabe. O choque de ordem não tardou: logo que assumiu, Xi deflagrou uma cruzada anticorrupção que puniu milhares de funcionários públicos e abriu espaço político para a maior reforma da burocracia estatal e da estrutura militar em décadas. A campanha foi bem recebida pelo público, cansado de ver membros do partido levando uma vida de luxo.

Mapa da estrutura do Partido Comunista Chinês — Foto: Editoria de Arte
Mapa da estrutura do Partido Comunista Chinês — Foto: Editoria de Arte

Sob a liderança de Xi, houve também um aumento significativo da presença do Estado na economia chinesa, com um papel maior de regulação e monitoramento. Até 2012, a ligação do PCC com os negócios era cada vez mais guiada pelo pragmatismo, mas também tornou-se associada a escândalos de corrupção. Na era Xi, o direcionamento tornou-se mais ideológico, com controle direto. Segundo a Federação de Indústria e Comércio da China, mais de 92,4% das maiores empresas privadas do país tem células do partido.

O aperto regulatório sobre várias áreas da economia do ano passado foi visto pelo setor privado como um recado de que os limites do livre mercado terminam onde começam os interesses do PCC. Empresários que haviam se tornado celebridades no país sumiram de cena, como o dono da gigante de comércio eletrônico Alibaba, Jack Ma.

Covid zero freia transição

A partir da campanha contra a corrupção a popularidade de Xi disparou, mas o medo de punições anestesiou a iniciativa dos governos locais, pondo em risco o dinamismo que havia catapultado a economia do país nas décadas anteriores. O excesso de zelo em cumprir as ordens de Pequim agora tem outro efeito negativo na política de Covid zero, em que milhões são confinados por um punhado de casos. Para um burocrata faz sentido, já que o número de infecções virou critério para avaliar o desempenho dos governos.

A política de Covid zero não é o único motivo para a desaceleração da economia, que cresceu apenas 0,4% no segundo trimestre. Mas ela potencializou outros problemas, colocando na geladeira a transição pretendida pelo governo chinês para um modelo baseado no consumo e com menor dependência de investimentos. O desemprego entre jovens disparou, criando o temor de que, pela primeira vez desde a abertura, em 1980, sua geração não fique melhor de vida que a anterior.

Quem hoje tem vinte e poucos anos foi à escola e tornou-se adulto na China de Xi Jinping, na qual se desviar da linha do partido é trair a nação. Muitos abraçaram o patriotismo promovido pelo PCC, mas agora se veem num momento de incerteza em relação ao futuro, à espera do novo capítulo da era Xi.

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