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Por Julie Turkewitz, The New York Times — Juliaca, Peru

Rodovias bloqueadas com rochas enormes e cacos de vidro. Cidades inteiras fechadas por grandes protestos. Cinquenta famílias a lamentarem os seus mortos. Exigências por um novo presidente, uma nova Constituição, um novo sistema de governo. Promessas de levar a luta até Lima, a capital do Peru. Autoridades locais alertam que o país caminha para a anarquia.

Um brado de protesto ecoava nas ruas: “Esta democracia não é mais uma democracia”.

Em vez de desaparecer, os protestos na zona rural do Peru, que começaram há mais de um mês após a queda do ex-presidente Pedro Castillo, só cresceram em tamanho e no escopo das demandas dos manifestantes. Eles paralisam setores inteiros do país e ameaçam os esforços da nova presidente, Dina Boluarte, para retomar o controle.

Agora, a insatisfação vai muito além da raiva sobre quem governa o país. Ela representa uma profunda frustração com a jovem democracia do Peru, que os manifestantes dizem não ter sido capaz de resolver o fosso entre ricos e pobres e entre Lima e as áreas rurais peruanas.

A democracia, dizem eles, em grande parte ajudou uma pequena elite – a classe política, os ricos e os executivos corporativos – a acumularem poder e riqueza, ao mesmo tempo em que ofereceu poucos benefícios a muitos outros peruanos.

De forma geral, a crise no Peru reflete uma crise de confiança nas democracias em toda a América Latina, instigada por Estados que “violam os direitos dos cidadãos, falham em fornecer segurança e serviços públicos de qualidade e são capturados por interesses poderosos”, de acordo com um novo artigo publicado periódico acadêmico The Journal of Democracy.

Manifestantes em uma barreira que construíram com pedras para bloquear a estrada principal entre Arequipa e Juliaca — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Manifestantes em uma barreira que construíram com pedras para bloquear a estrada principal entre Arequipa e Juliaca — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Manifestantes em frente a fogueira na estrada entre Juliaca e Arequipa — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Manifestantes em frente a fogueira na estrada entre Juliaca e Arequipa — Foto: Federico Ríos/The New York Times

No Peru, o ex-presidente Castillo, de esquerda, prometera lidar com a pobreza e desigualdade, mas, inexperiente e sem apoio, não conseguiu governar. Ele foi acusado e preso em dezembro depois de tentar dissolver o Congresso e governar por decreto.

Seus defensores, a maioria deles nas regiões rurais pobres do país, iniciaram protestos, às vezes queimando prédios do governo, bloqueando rodovias vitais e ocupando aeroportos. O governo do Peru logo declarou estado de emergência, enviando forças de segurança para as ruas.

Boluarte, que vem da zona rural de Apurímac, no Centro-Sul, concorreu ao lado de Castillo no ano passado e foi eleita vice-presidente. Mas ela rejeitou a tentativa de seu ex-aliado de governar por decreto, chamando-a de golpe autoritário, e, seguindo a Constituição, assumiu o seu lugar. Desde então, ela pediu unidade e, respondendo às demandas dos manifestantes, convocou os parlamentares a promover novas eleições.

O Congresso, onde muitos membros relutam em abrir mão do poder, barrou esse esforço, e os críticos de Boluarte agora a consideram uma presidente fraca a mando de uma legislatura egoísta.

A princípio, os manifestantes buscavam principalmente a volta de Castillo ou novas eleições o mais rapidamente possível. Agora, querem algo muito maior: uma nova Constituição e até mesmo, como dizem cartazes, “refundar a nação”.

Desde a remoção de Castillo, pelo menos 50 pessoas foram mortas, 49 delas civis, algumas delas baleadas no peito, nas costas e na cabeça, levando grupos de direitos humanos a acusarem os militares e a polícia de uso excessivo da força e de disparos indiscriminados contra manifestantes.

Essas mortes atingiram particularmente a cidade de Juliaca, no Sul do país, a dois dias de carro da capital, passando por montanhas cobertas de neve, arbustos e lhamas e vicunhas pastando.

Asunta Jumpiri chora no caixão de seu filho, Brayan Apaza, 15, que foi baleado na cabeça durante os protestos  — Foto: Federico Ríos
Asunta Jumpiri chora no caixão de seu filho, Brayan Apaza, 15, que foi baleado na cabeça durante os protestos — Foto: Federico Ríos
Pessoas choram em torno do caixão de Brayan. Um confronto entre manifestantes e policiais em 9 de janeiro marcou o dia mais mortal desde a queda do presidente Pedro Castillo — Foto: Federico Ríos/The New  York Times
Pessoas choram em torno do caixão de Brayan. Um confronto entre manifestantes e policiais em 9 de janeiro marcou o dia mais mortal desde a queda do presidente Pedro Castillo — Foto: Federico Ríos/The New York Times

A quase 4 mil metros acima do nível do mar, apenas 40% da população de Juliaca têm água corrente, muitas estradas não são pavimentadas e a desnutrição é o maior problema no único hospital público.

Na semana passada, 19 pessoas morreram em uma única manifestação, marcando o confronto mais mortífero entre civis e atores armados no Peru em pelo menos duas décadas. Dezoito dos mortos foram civis baleados por armas de fogo, de acordo com um promotor local. Um policial foi encontrado morto dentro de uma viatura que havia sido incendiada.

O Ministério do Interior do país disse que os oficiais responderam legalmente depois que milhares de manifestantes tentaram ocupar o aeroporto local, alguns com armas improvisadas e explosivos.

O mais jovem a morrer foi Brayan Apaza, de 15 anos. Sua mãe, Asunta Jumpiri, de 38 anos, agora chora o seu “menino inocente” morto após sair para comprar comida. Em seu velório na semana passada, passando por um bloqueio de pneus em chamas na estrada, os apoiadores seguraram bandeiras pretas no peito e prometeram lutar até que Boluarte renunciasse.

— Nós nos declaramos em estado de insurgência — disse Orlando Sanga, líder do protesto, do lado de fora de um salão sindical usado para a vigília.

Perto dali, Evangelina Mendoza, vestindo a tradicional saia e camisa das cholas, as mulheres indígenas da região, disse que, se Boluarte não renunciasse, “vai escorrer sangue no Sul”.

Mas poucas investigações sobre distúrbios e protestos no Peru neste século levaram a condenações, e uma nova lei que removeu a exigência de que a polícia aja proporcionalmente em sua resposta aos civis torna-as ainda mais difíceis, disse Carlos Rivera, do Instituto de Defesa Legal, uma ONG peruana.

O Peru, onde moram 33 milhões de pessoas, o quinto maior país da América Latina, voltou à democracia há apenas duas décadas, após o regime autoritário de Alberto Fujimori (1990-2000).

Mas o sistema atual do país, baseado em uma Constituição da era Fujimori, está repleto de corrupção, impunidade e má administração, pelos quais até mesmo os governantes culpam a falta de supervisão e uma cultura de clientelismo.

Ao mesmo tempo, metade da população carece de acesso suficiente a nutrição, segundo as Nações Unidas, e o país ainda se recupera da pandemia, na qual registrou o maior número de mortes per capita do mundo.

Um menino foi morto, disse sua mãe, enquanto saía para comprar comida. — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Um menino foi morto, disse sua mãe, enquanto saía para comprar comida. — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Os promotores disseram que investigariam as mortes de civis, mas não estava claro se haverá justiça — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Os promotores disseram que investigariam as mortes de civis, mas não estava claro se haverá justiça — Foto: Federico Ríos/The New York Times

A intensa concentração da propriedade da mídia, com muitos veículos baseados em Lima ignorando os protestos ou destacando as acusações de que os manifestantes são terroristas, apenas exacerbou a sensação de que a elite urbana conspirou contra os pobres das áreas rurais.

A confiança nas democracias em toda a América Latina caiu nas últimas duas décadas, de acordo com o AmericasBarometer, uma pesquisa regional realizada pela Vanderbilt University. Mas em poucos lugares a questão é mais aguda do que no Peru, onde apenas 21% das pessoas dizem estar satisfeitas com a sua democracia – abaixo dos 52% de uma década atrás. Apenas o Haiti se sai pior.

Em Juliaca, dezenas de pessoas foram baleadas no confronto com a polícia na semana passada, e o hospital público da cidade está lotado de pessoas se recuperando dos ferimentos. Lá dentro, caixinhas de papelão para coleta ficam ao lado de muitos leitos, pedindo ajuda para despesas médicas.

“Pulmão perfurado”, diz o sinal em uma caixa de coleta. “Bala na espinha”, diz outro.

Yulinio Mamani se recuperando após ser baleado durante um protesto em Juliaca — Foto: Federico Ríos/The New  York Times
Yulinio Mamani se recuperando após ser baleado durante um protesto em Juliaca — Foto: Federico Ríos/The New York Times
O irmão de Saul Soncco mostra uma foto de um raio-X que indica uma bala ao lado de sua coluna — Foto: Federico Ríos/The New York Times
O irmão de Saul Soncco mostra uma foto de um raio-X que indica uma bala ao lado de sua coluna — Foto: Federico Ríos/The New York Times

Alguns dos feridos pareciam ter medo de dizer que protestavam, e uma dúzia de homens com ferimentos a bala disseram que passavam pela manifestação quando foram atingidos.

Nenhum dos feridos disse ter recebido cópias de seus relatórios médicos, o que os ajudaria a entender a origem e o tratamento adequado para seus ferimentos. O acesso a essas informações é um direito da lei peruana, mas várias pessoas disseram acreditar que eram punidas por sua associação com as manifestações.

Em uma cama estava Saúl Soncco, 22, baleado nas costas, disse ele, enquanto voltava para casa do trabalho como carpinteiro.

Seu irmão conseguiu tirar uma fotografia de um raio-X mostrando uma bala alojada ao lado de sua coluna. Ainda assim, disse a família, os funcionários do hospital disseram que ele deveria ir para casa.

O diretor do hospital, Victor Candia, disse que os pacientes estão recebendo os cuidados de que precisam.

Boluarte, em um discurso à nação na sexta-feira, ofereceu suas condolências às famílias dos mortos, descrevendo os manifestantes como peões involuntários levados às marchas por manipuladores que buscam derrubá-la.

— Algumas vozes, influenciadas por violentos, por radicais, estão exigindo minha renúncia — disse ela. — Levam o povo ao caos, desordem e destruição. A isso respondo com responsabilidade: não vou renunciar.

Em Juliaca, apenas 40% da população tem água encanada, muitas estradas não são pavimentadas e o maior problema do hospital público é a desnutrição. — Foto: Federico Ríos/The New Y ork Times
Em Juliaca, apenas 40% da população tem água encanada, muitas estradas não são pavimentadas e o maior problema do hospital público é a desnutrição. — Foto: Federico Ríos/The New Y ork Times
Pessoas na fila para prestar homenagem à família de Brayan Apaza — Foto: Feederico Ríos/The New York Times
Pessoas na fila para prestar homenagem à família de Brayan Apaza — Foto: Feederico Ríos/The New York Times

Brayan, de 15 anos, foi morto por uma bala na cabeça, de acordo com sua autópsia. Em seu funeral, centenas se reuniram em um cemitério na periferia da cidade, onde um líder do protesto, César Huasaca, gritou por justiça, dirigindo sua raiva a Boluarte.

— Você acha que nos intimida? — ele gritou. — Não! Estamos mais fortes do que nunca.

Huasaca continuou:

— Somos 33 milhões. O que nós vamos fazer? Forçá-los a respeitar os nossos direitos! Não é esquerda, nem direita, o que a gente quer é atenção!

Depois de uma missa oferecida por um padre com uma túnica branca simples, uma orquestra seguiu o caixão até um terreno baldio. Lá, Jumpiri, a mãe de Brayan, proferiu algumas das últimas palavras antes de seu enterro.

— Dina! — ela gritou, dirigindo-se à presidente, com as mãos segurando o caixão de Brayan, o rosto contorcido de dor. — Estou pronta para morrer por meu filho! Vou à luta, quero justiça!

Em seguida lançou um desafio:

— Dina! Me mate!

Protesto em Juliaca — Foto: Federico Ríos/The New York Times
Protesto em Juliaca — Foto: Federico Ríos/The New York Times
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