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Por Javier G. Cuesta, El País

Uma enorme placa cobre o prédio da Russian Railways em Moscou com o slogan “Pelo presidente, pelo Exército, pelo Rússia". Nas ruas há cartazes com os rostos dos militares lutando contra a Ucrânia com “Glória aos heróis da Rússia!” escrito abaixo, e, ao lado do shopping Semenovskaya, uma tela gigante intercala as últimas manchetes das agências de notícias do Kremlin como o Z que é a marca da invasão. “Não deixamos os nossos para trás”, está escrito naquele rectângulo gigante estampado com a bandeira nacional, e mesmo à frente um anúncio de recrutamento apela ao alistamento.

A mudança foi gradual no último ano: inicialmente tentava-se manter a população distante, mas agora a guerra permeia tudo. Depressão, resignação e dever são as três formas mais comuns de lidar com isso. Embora uma grande parte dos russos declarasse o fim de sua ofensiva amanhã se assim pudesse, muitos reafirmam que, acima de tudo, devem se manter fiéis à pátria. Qualquer outra coisa, eles ouvem repetidamente, é traição ou covardia.

Enquanto o resto do mundo festejou o Ano Novo com mensagens de esperança, o presidente russo, Vladimir Putin, fez seu discurso em um ambiente sombrio e cercado por militares, para insistir com os russos que eles estão em guerra contra o Ocidente. Exigiu lealdade da população:

— Foi um ano que separou claramente a coragem e o heroísmo da traição e da covardia. Que mostrou que não há poder maior do que o amor à família e aos amigos, a lealdade aos colegas e a devoção à pátria — sublinhou no início da sua mensagem de Natal.

Duas semanas depois, o Conselho Presidencial de Direitos Humanos propôs emendar o artigo 275 do Código Penal, sobre alta traição, para acrescentar o conceito de "traição sob qualquer forma". Segundo a agência, isso facilitaria a punição de centenas de milhares de russos que fugiram do país ou que não querem uma vitória para sua pátria. O presidente da Duma Estatal, Viacheslav Volodin, e o vice-presidente do Conselho de Segurança, Dmitry Medvedev, pediram publicamente a retirada da nacionalidade e o confisco dos bens destas pessoas por serem "inimigos do Estado".

A Rússia é Putin, mas Putin não é a Rússia. O forte senso de comunidade de seus cidadãos e o aparato repressivo, cada vez mais uniforme, provocam enormes contradições entre os russos, o que deixou o país em colapso nervoso. A venda de antidepressivos disparou (48% interanual entre janeiro e setembro, segundo o setor, embora desde a mobilização a situação pareça ainda pior), e muitas famílias foram desfeitas pela política.

“Até se a coisa [o massacre] de Bucha fosse verdade, eu não daria a mínima. As únicas pessoas com quem me importo são os soldados russos. Eles são meus irmãos, estão morrendo lá, falar sobre isso não é construtivo para mim”, foi a última coisa que uma mulher escreveu no outono antes de cortar todos os laços com um amigo estrangeiro. É um dos milhares de exemplos da tensão atual, embora seja pior entre pais e filhos.

— Eu não vou voltar para o Natal. Em casa me culpam por criticar a guerra e vários parentes retiraram minha palavra — conta Elena, uma jovem que mora na Espanha há vários anos.

É o caso também de Mikhail, de São Petersburgo:

— Eu pelo menos converso com minha mãe, embora às vezes ela fique tensa. Com meu irmão o contato é mínimo, e porque nossa mãe nos obriga. Nós apenas nos cumprimentamos — afirmou. — Eles acreditam em tudo. Antes era que a Polônia ai ficar com uma parte da Ucrânia; agora, que a Ucrânia vai se tornar católica.

É muito raro ver cadáveres na mídia permitida pelo Kremlin, mesmo os das unidades ucranianas mais demonizadas, como o Batalhão Azov. Apesar dos desabafos dos comentadores, a guerra é anódina na televisão para o eleitor mais velho, enquanto pouquíssimos jovens se atrevem a publicar algo relacionado com os massacres e apenas se gabam da sua ociosidade nas redes sociais. Apenas os canais do Telegram são uma janela aberta para a realidade suja da guerra.

O tempo do medo

"O medo é um dos sintomas do nosso tempo", disse Ernst Jünger em A emboscada (1951). Essa afirmação parece ainda mais válida hoje, porque os russos, por serem apolíticos e não quererem se incomodar em levantar a voz, delegaram cegamente o seu futuro a Putin.

Embora 71% da população apoie as ações de seu Exército, 50% gostariam de iniciar imediatamente as negociações de paz, 10 pontos a mais do que aqueles que querem continuar a luta, segundo uma pesquisa de dezembro do prestigiado centro sociológico Levada, declarado agente estrangeiro pelo Kremlin.

— A maioria dos russos mostra que gostaria de acabar com o conflito se essa fosse a posição do presidente. Apoiam abertamente qualquer posição que considerem benéfica para o Estado, qualquer posição porque não entendem exatamente o que está acontecendo na Ucrânia e acreditam que, em tempos de guerra, deve-se apoiar seu país — disse Antón Barbashin, diretor do portal Riddle, ao EL PAÍS. — Qualquer outra posição seria antipatriótica ou traidora. Além disso, os dados revelam que o grupo que deseja continuar a guerra é uma minoria.

Segundo a pesquisa, 34% dos russos "se sentem moralmente responsáveis ​​pela morte de civis e pela destruição na Ucrânia".

— Considerando a propaganda e a repressão, é um número bastante alto — enfatiza Barbashin. — Infelizmente, qualquer catarse significativa só será possível depois da guerra. Qualquer debate que surgir dependerá de como a guerra termina e quem são os líderes da Rússia naquele momento.

Putin, assediado por uma guerra sem horizonte claro, constrói o Estado russo em torno da guerra e do amor à morte. Sobre organizações juvenis patrióticas, lemas sobre a honra de morrer em combate e aulas sobre armas. Críticas ao Exército são puníveis com prisão, e as novas leis sujeitam as empresas à cobertura de necessidades militares. E o Ministério da Defesa elevou o seu teto de pessoal de 1,1 para 1,5 milhão de soldados. Além disso, fontes do Kremlin asseguram ao diário Kommersant que Putin planeja conquistar mais um mandato à Presidência em 2024.

— Se me chamarem, vou para o Exército, não vou fugir — diz um homem de meia-idade em um grupo de amigos no ginásio, enquanto discutem uma possível nova mobilização.

Centenas de milhares de russos fugiram do país para não irem para a frente de combate, mas muitos mais estão resignados e encaram um futuro incerto com mais ou menos otimismo.

— Meu irmão se alistou como voluntário para defender seu país, a Otan nos ataca e Putin nos defende — diz Yulia animada em um bate-papo entre conhecidos.

“E você, o que acha da Rússia?” é a pergunta usual com a qual estranhos iniciam uma conversa com estrangeiros.

— A Otan nos cerca, temos que nos defender — disse um homem a vários jornalistas depois de ouvi-los falar em espanhol.

“Vocês são escravos dos Estados Unidos" e "vocês colonizaram o mundo" são outros argumentos comuns para justificar sua guerra.

No entanto, o Kremlin sabe que também existem muitas outras vozes críticas. Como disse Ernst Jünger, "se as grandes massas fossem tão transparentes quanto a propaganda afirma, se seus átomos fossem tão orientados na mesma direção, então seria necessário uma quantidade de policiais que não fosse maior do que os cães de que um pastor precisa para seu rebanho".

Porém, na Rússia existem mais de dois milhões de policiais, e não há canto que não seja vigiado por uma câmera ou vários agentes.

— Apenas o Irã viveu mais protestos do que a Rússia nos últimos cinco anos em países autoritários. A ideia de que há poucos protestos é um viés criado pela mídia — diz o analista Alexander Badin com dados do Carnegie Center em Moscou e da revista The Economist.

— Mas as autoridades russas aprenderam a suprimir o potencial de manifestações sem fazer concessões, e uma das narrativas de propaganda mais bem-sucedidas é que os protestos são fúteis e organizados por perdedores — acrescenta.

De acordo com o canal OVD-Info, 19.478 manifestantes foram presos desde o início da guerra.

A OCDE estima que um terço da população ativa trabalhava para o Estado antes da pandemia. A cientista política Ekaterina Shulman aponta que são eles, "a burocracia civil, as mesmas pessoas que foram destituídas de seus poderes consistentemente durante os últimos 15 anos". Segundo ela, o Exército, a espionagem e a propaganda "mantiveram o Estado à tona" e, ao mesmo tempo, foram "os elementos em torno dos quais o sistema político construiu sua identidade".

Na Rússia não há greves.

— Se eu sair, não vou encontrar outro emprego assim e facilmente me substituirão — admite um funcionário de uma entidade pública que pede anonimato.

— Todos estes anos desgostoso com o que faço serviram para alguma coisa — admite um jovem colega seu, excluído da mobilização militar graças ao fato de o seu emprego no Estado se enquadrar na lista de exceções do governo.

Um bônus em busca de manter o maquinário do Kremlin lubrificado.

— Em novembro eles nos pediram para transferir o salário do primeiro dia de trabalho para o fundo de auxílio à mobilização. Disseram que era ‘voluntário’, mas transferiram tudo para evitar problemas com as autoridades — diz um professor universitário.

A intervenção do Estado é ainda maior nas escolas.

—Existem muitos eventos patrióticos nas escolas: hasteamento da bandeira, aulas de patriotismo, encontros com veteranos… é como se eles tirassem metade do tempo de estudo. Os pais não estão felizes, mas ninguém discute.

O futuro é decidido agora, com as eleições presidenciais de 2024 nos EUA e na Rússia em segundo plano. Questionado se uma derrota poderia germinar na Rússia um ressentimento semelhante ao dos impérios que perderam a Primeira Guerra Mundial, Barbashin se mostra otimista.

— A menos que a Rússia acabe com uma versão do Tratado de Versalhes, qualquer futuro governo se concentrará em aliviar suas sanções e normalizar as relações com o Ocidente. É difícil imaginar a Rússia sendo abandonada após esta guerra como a Alemanha foi na década de 1920 — disse Barbashin.

A questão-chave é se o putinismo sobreviverá à ofensiva que ele mesmo lançou.

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