Em seu aniversário de um ano, completado nesta sexta-feira, a guerra na Ucrânia continua sem fim à vista, sem nenhum lado disposto a negociar. No campo de batalha, a Rússia lançou nas últimas semanas uma nova ofensiva no Leste, que repete erros comuns desde o início do conflito, como a dispersão em vez da concentração de forças. A Ucrânia prepara um contra-ataque para a primavera ou início do verão no Hemisfério Norte. Em médio e longo prazos, Moscou acredita que sua determinação durará mais tempo do que a dos aliados ocidentais que sustentam o esforço de Kiev. Entre os ucranianos, prevalece a disposição de aguentar os custos da guerra, e os EUA não indicam que vão retirar o apoio enquanto o lado agredido quiser continuar a lutar.
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No início de fevereiro, de modo discreto, com um ataque a um radar no sul da província de Donetsk, a Rússia deu início à sua ofensiva no inverno, aguardada por meses. As operações se intensificaram em cinco direções em Luhansk, Donetsk e Zaporíjia, todas no leste, onde as batalhas se concentram. Esse ataque, no entanto, ainda não conseguiu produzir qualquer avanço significativo. Em entrevista à versão ucraniana da revista Forbes publicada na quarta-feira, o chefe da inteligência das Forças Armadas da Ucrânia, Kyrylo Budanov, afirmou que a ofensiva russa é ineficaz a ponto de ser quase imperceptível.
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— A grande ofensiva russa que eles tinham em mente já está em andamento. Mas, tamanha é a qualidade desse ataque, que ele acontece de um modo que nem todo mundo vê — ironizou Budanov. — Eles têm uma tarefa estratégica: chegar às fronteiras administrativas das regiões de Donetsk e Luhansk até 31 de março.
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Segundo o Instituto de Estudos da Guerra (ISW), um centro de Washington que monitora o conflito, o objetivo de capturar nesse prazo as duas províncias do Donbass, onde há conflitos desde 2014, “não é realista”. Embora tenha guardado reservas, as tropas russas mais uma vez, tal como acontece há um ano, diluíram-se em eixos de forma demasiada. Elas se espalham principalmente num trecho de 200 quilômetros, de Kremina, no norte de Donetsk, a Vuhledar, no sul da província.
As forças russas precisam de alguma vitória para levantar o seu moral, e elas devem vir em alguns lugares. Segundo a maioria dos observadores, é provável a captura de Bakhmut, uma cidade de 73 mil habitantes onde uma batalha se arrasta desde julho. A queda da cidade terá custado uma quantidade significativa de soldados e recursos russos. As forças ucranianas também podem recuar em Kremina no futuro próximo.
A avaliação geral, no entanto, é de que as forças russas estão distendidas quase ao seu limite, e será necessária uma nova mobilização, após a convocação de 300 mil soldados em setembro, se quiserem avanços maiores. Segundo o boletim da inteligência britânica de 12 de fevereiro, a Rússia sofre até 800 baixas por dia, o que dá mais de 20 mil soldados por mês.
Racionamento de projéteis de artilharia
Também há muitas evidências de que o país já raciona projéteis de artilharia. Segundo Budanov, as forças russas dispararam cerca de 20 mil projéteis por dia no final de dezembro de 2022, um terço dos 60 mil projéteis por dia durante os estágios iniciais da guerra. O mesmo general avalia que os estoques da artilharia russa diminuíram para 30% do total. Segundo o ISW, a Rússia perdeu entre 1,5 mil e 2 mil tanques.
Esse possível esgotamento das forças russas oferece uma oportunidade de contra-ataque à Ucrânia. Desde novembro, quando reconquistaram Kherson, as tropas ucranianas não tomaram mais a iniciativa. Segundo Michael Kofman, diretor da área de Rússia do CNA, de Washington, “é muito provável” que o ataque ucraniano tenha lugar no sul ou em Zaporíjia.
— Haverá então um risco muito menor de um contra-ataque russo, porque os militares russos já terão ido primeiro — afirmou.
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Algumas armas ocidentais, como tanques e blindados, já terão chegado — relatos na mídia ucraniana, não confirmados por outras fontes, falam que até 25% do total de entregas de tanques é aguardado até junho. Há soldados ucranianos sendo treinados neste momento para usá-los. As remessas devem acrescentar até três brigadas de equipamento blindado mecanizado, a se somarem às atuais quatro.
Enquanto isso, a Ucrânia continua a ser bem-sucedida para convocar soldados, e há indícios de que adicionou 20 mil pessoas ao contingente em janeiro. O seu principal gargalo são projéteis de artilharia, sobretudo de 55mm. O Ocidente enfrenta desafios de produção industrial, como já alertaram o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, e o diplomata-chefe da União Europeia, Josep Borrell, mas intensificou sua produção, e a diferença deve começar a ser sentida a partir do final de março ou abril. Segundo Kofman, é “improvável” que, em seu conjunto, a força ucraniana disponível baste para a retomada completa do leste, embora provavelmente venha a obter algumas conquistas.
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Os observadores do conflito se dividem sobre o quão importante 2023 será em termos de operações militares. Jeffrey Edmonds, do Centro para uma Nova Segurança Americana (CNAS), de Washington, entende que “há muita pressão agora sobre os dois lados”, mas que ele “não vê 2023 neste momento sendo superdecisivo, no sentido de que um lado realmente perca uma grande quantidade de território”.
Já Mike Martin, pesquisador de Defesa do King’s College em Londres, avalia que provavelmente “teremos mais algumas semanas de desgaste contra os ataques russos e, em seguida, uma ofensiva blindada ucraniana, provavelmente no sul”. Segundo ele, a Ucrânia “não pode deixar isso se arrastar até 2024 — o ano da eleição presidencial dos EUA”, porque é “muito arriscado” correr o risco de perder o apoio financeiro e militar oferecido sob a liderança de Washington.
— Eles têm de vencer. Em 2023 — afirmou Martin.
A base do apoio
A continuidade do apoio americano é o principal fator externo a definir o prosseguimento indefinido do conflito. Oficialmente, o governo de Joe Biden afirma que apoiará Kiev enquanto os ucranianos estiverem dispostos a resistir. Há, no entanto, atores que defendem que os interesses dos EUA e da Ucrânia não são idênticos, e que Washington deve pressionar por negociações, suspensas desde maio do ano passado.
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Um artigo publicado no final de janeiro pela influente RAND Corporation, próxima ao Pentágono, resume essa linha de argumentação. No texto, os pesquisadores Samuel Charap e Miranda Priebe afirmam que, entre os riscos de um conflito prolongado, estão o perigo do uso de armas nucleares, a possibilidade de a Otan se envolver diretamente, os custos econômicos para a Europa, a perda de vidas e a calamidade humanitária e a impossibilidade de os EUA concentrarem sua atenção sobre a China, o seu principal rival estratégico. Em seu conjunto, essas consequências “superam em muito os possíveis benefícios” para Washington.
Entre os líderes de Rússia e Ucrânia, contudo, “o otimismo sobre a trajetória futura da guerra e o pessimismo sobre as chances e os benefícios da paz inibem as negociações”. Segundo Charap e Prieb, os dois lados não acreditam um no outro. Além disso, há em Kiev “a crença de que a ajuda ocidental continuará indefinidamente ou aumentará em qualidade e quantidade”, enquanto, para a Rússia, há a ideia “de que as sanções ocidentais continuarão após a guerra terminar, tornando a paz menos atraente”.
Os autores sugerem quatro medidas de aproximação: uma maior clareza sobre qual será o futuro da ajuda à Ucrânia, o compromisso ocidental com a segurança ucraniana pós-guerra, o compromisso da Otan com a neutralidade da Ucrânia e o estabelecimento de condições para a suspensão das sanções contra a Rússia. Em seu conjunto, essas medidas são o que de mais próximo há para um caminho de fim negociado. “A alternativa é uma longa guerra que representa grandes desafios para os Estados Unidos, a Ucrânia e o resto do mundo”, escreveram os autores.
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