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Por Eduardo Graça — São Paulo

O jornalista David De Jong começou a trabalhar na Bloomberg, em Nova York, uma semana após a remoção pela polícia dos militantes do Occupy Wall Street, no sul de Manhattan. Um dos efeitos da crise financeira global de 2007 foi o aprofundamento da discussão sobre a distância entre o 1% mais ricos do planeta e os demais 99%. Fluente em alemão, o holandês foi destacado para descobrir boas histórias sobre os mais ricos da maior economia europeia. Há 11 anos, surgia o esboço de “Bilionários nazistas: a tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha” (Objetiva), lançado na Europa e EUA no ano passado e, a partir desta semana, nas livrarias brasileiras. O livro já é considerado uma das mais originais reflexões sobre os limites do monumental esforço de reeducação histórica conduzido pela sociedade alemã do pós-guerra.

No livro, De Jong disseca a história de cinco famílias de bilionários que se beneficiaram do regime responsável pelo Holocausto. Os Quandt, cujos herdeiros controlam hoje a BMW, a Mini Cooper e a Rolls-Royce; os Flicks, única das perfiladas com personagens julgados no Tribunal Militar de Nuremberg; os Von Fincks, banqueiros e seguradores com descendentes que, revela a minuciosa investigação, financiam hoje a extrema direita alemã; os Oetkers, controladores da Dr.Oetker, gigante global na área de alimentos, espumantes e hotéis de luxo; e os Porsche-Piëchs, líderes do grupo Volkswagen, que inclui Audi, Bentley e Lamborghini.

Ao mergulhar nas histórias de forma didática, com auxílio de mapas, árvores genealógicas e farta documentação, De Jong detalha o financiamento (inclusive eleitoral) do nazismo por magnatas em busca de estabilidade econômica na Alemanha dos anos 1930, a apropriação de negócios de judeus e a falha grave na desnazificação do país, que jogou para debaixo do tapete atitudes criminosas de alguns dos mais poderosos sobrenomes da sociedade alemã. Procurada por De Jong, a maioria das famílias e herdeiros se recursou a tratar do tema. Ele conversou com O GLOBO por videochamada.

Livro 'Bilionários Nazistas' — Foto: Divulgação
Livro 'Bilionários Nazistas' — Foto: Divulgação

A Alemanha é considerada exemplo de sociedade que encarou os horrores do passado e se tornou, como você mesmo escreve, “a espinha dorsal moral do Ocidente”. Seu livro, no entanto, mostra que esta não é a história completa...

A sociedade alemã viveu um processo de transparência e reflexão impressionantes ao lidar com os crimes contra a Humanidade cometidos pelo Terceiro Reich. Porém, foi dada a atores poderosos, no topo da pirâmide econômica, a possibilidade do caminho oposto. Financiaram o regime, enriqueceram com o trabalho forçado e a eles foi permitido jogar a História para debaixo do tapete, mas deixaram pegadas. Fui atrás delas.

Este contraste foi um dos motivadores do livro?

Sim. O empresariado alemão não ofereceu, com raras exceções, nem desculpa sobre a responsabilidade moral que teve no financiamento da máquina de guerra nazista e de seus crimes. Comandantes de empresas que se beneficiaram dos horrores do trabalho forçado ainda hoje tentam encobrir o que seus antepassados fizeram.

Por que os bilionários não foram punidos durante a desnazificação da Alemanha?

A lógica ultrapassa as fronteiras do país. Eles eram importantes para o desenho capitalista da Alemanha Ocidental no contexto da Guerra Fria. O motor liberal da Europa Central se beneficiaria dessas fortunas. E foi uma decisão moral e política dos EUA e aliados. O julgamento dos simpatizantes do nazismo após o Tribunal Militar de Nuremberg foi transferido para a nova ordem instaurada. Uma das consequências foi a ausência de punições, em 99% dos casos no topo da pirâmide social.

Quais as consequências para a Alemanha de se ignorar o passado dessas famílias?

A lógica de que eles eram muito grandes para serem punidos, o que, aliás, lembra o socorro dado aos bancos durante a crise financeira global, ajudou a calcar um país conservador, com hierarquias bem definidas, inclusive sobre quem tem o direito ao esquecimento. Escrevi sobre herdeiros que se viram com bilhões de marcos e no comando de empresas importantes. Suas identidades estavam diretamente relacionadas às histórias de sucesso de seus pais e avôs. Nessa mitologia do empreendedor, não cabia o fato de que alguns deles foram voluntários na SS (polícia nazista), cometeram crimes contra judeus, se filiaram ao Partido Nazista. Com a exceção dos Porsche-Piëch, as outras famílias perfiladas já eram extremamente ricas antes da emergência de Hitler, desde o Império Alemão. Para eles, há algo de noblesse oblige em relação ao meu esforço de reportagem e, ainda mais grave, também à opinião pública alemã: “Quem são vocês pra nos questionar?”.

Autor e jornalista David De Jong  — Foto: Divulgação
Autor e jornalista David De Jong — Foto: Divulgação

Lucrar com trabalho análogo à escravidão é, infelizmente, tema ainda urgente. As famílias perfiladas no livro fizeram alguma reparação às famílias desses trabalhadores?

Em geral, ao serem reveladas pegadas nazistas, as famílias, embora comandem empresas de dimensão global, se limitam a contratar um historiador e publicar o resultado em alemão. No caso do trabalho forçado, a escala foi imensa. Essas famílias se beneficiaram do maior programa de trabalho forçado na História da Humanidade: entre 12 milhões e 20 milhões de europeus foram deportados para a Alemanha para trabalhar em situação análoga à da escravidão. Estima-se que 2,5 milhões morreram nas fábricas espalhadas pelo país. Não lidar com isso de uma forma clara é escandaloso.

E o componente ideológico?

Muitos desses empresários não eram antissemitas ou nazistas. A questão não era a ideologia, mas a necessidade de seguir enriquecendo. Para isso, era central que a economia se estabilizasse e depois crescesse, como Hitler prometeu a eles em 1933, na reunião que abre o livro. O restante era percebido como efeito colateral. A essência do problema é a amoralidade do capitalismo. Encontrei dois exemplos de herdeiros desses bilionários que financiaram movimentos neonazistas e o partido de extrema direita populista AfD, que se tornou o terceiro maior do país em 2017.

As falhas no processo de desnazificação da Alemanha oferecem lições aos EUA e ao Brasil após a invasão do Capitólio, do Palácio do Planalto, do STF e do Congresso Nacional?

A mais direta é a necessidade de investigar não só militantes e mentores ideológicos, inclusive com cargo eletivo, dos assaltos à democracia, que são, claro, os protagonistas da barbárie. Mas também quem financia atos e faz propaganda golpista. É preciso denunciá-los e puni-los.

Qual a melhor maneira de fazer justiça no caso dos herdeiros dos bilionários nazistas?

Transparência histórica, como tem ocorrido no caso dos herdeiros de quem se beneficiou da escravatura. Isso é o mínimo que consumidores de marcas tão gigantes como BMW, Volkswagen, Allianz e Dr. Oetker podem esperar. Que não apenas celebrem as conquistas de seus patriarcas, mas assumam seus crimes de guerra e passado nazista. Hoje essas famílias empregam milhões de euros para encobrir o passado enquanto batizam alas de museus, cátedras acadêmicas, fundações globais e até prêmios à imprensa com os nomes dessas pessoas. Especialmente no momento em que a desinformação é tão prevalente e as empresas são cobradas por responsabilidade social e ambiental, a contradição é gritante. Com esse livro, peço por honestidade. Convenhamos, não é muito.

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