A três dias de completar um ano de governo, o presidente do Chile, Gabriel Boric, sofreu um revés significativo na quarta-feira: a Câmara dos Deputados rechaçou o projeto de reforma tributária que buscava aumentar a arrecadação para financiar seus programas sociais e outros pilares de sua agenda. É o baque mais recente dos vários que marcaram o início do mandato, mas que coincide com sinais de que há luz no fim do túnel.
Apesar de a Câmara chilena ser bastante fragmentada, os sinais eram que o governo conseguiria aprovar a proposta, algo verbalizado pelo próprio ministro da Fazenda, Mario Marcel. O projeto, contudo, recebeu 71 votos a favor, 73 contra e três abstenções — não houve maioria simples pelas regras do país, já que a soma dos críticos e dos isentos supera o apoio. Ao menos três parlamentares de esquerda não foram à sessão.
A iniciativa era particularmente emblemática pois criaria o primeiro imposto sobre o patrimônio em um país que tem uma das taxações de fortuna e renda mais baixas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O plano era aumentar a arrecadação para 3,6% do Produto Interno Bruto chileno, algo ao redor de US$ 10 bilhões (R$ 51,7 bilhões).
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Agora, restam duas opções ao presidente esquerdista: pode aguardar um ano e levar o plano novamente à votação na Casa ou tentar a sorte em um Senado onde as forças de direita somam a metade dos assentos. Até a noite de ontem, ainda não tinha decidido qual caminho seguir.
O golpe veio seis meses após uma outra derrota simbólica sofrida por seu governo: a rejeição no referendo de setembro do projeto de Constituição que substituiria a herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1990-1973). Após meses de impasse sobre os próximos passos, o Legislativo aprovou em janeiro o novo processo.
Não será exatamente como o governo queria, já que o Palácio de La Moneda apoiava a derrotada convenção paritária eleita pelo voto popular e com cotas reservadas para os povos indígenas. Agora, apenas os 50 membros do Conselho Constitucional serão eleitos em eleição no dia 7 de maio.
As duas derrotas foram os pontos mais baixos de um ano marcado pela expectativa ao redor do jovem mandatário, que se tornou uma estrela política durante os megaprotestos que o país viu em 2019. Além do Legislativo hostil, precisou navegar por erros ingênuos, a inexperiência de seu Gabinete e turbulências econômicas.
— A votação de hoje foi um golpe contra a esperança, mas o Chile sabe se recuperar dessas ninharias — disse Boric após a derrota de quarta, afirmando que seu governo “está mais forte que há um ano”.
Há sinais, contudo, de que o céu começa a desanuviar em Santiago diante da percepção de que o presidente se saiu bem em sua resposta aos incêndios florestais que o país viu nas últimas semanas. Números econômicos animadores e uma resposta firme a problemas de segurança também o ajudam.
O impacto fica claro em sua popularidade, com duas pesquisas que mostram melhora na aprovação presidencial: 35% segundo a Cadem, o melhor resultado desde setembro passado, e 39%, segundo a Criteria, o melhor desde a posse.
Apesar da resistência tradicional da esquerda, Boric ordenou o envio das Forças Armadas ao Sul e ao Norte para enfrentar questões como migração irregular, criminalidade e ações violentas de grupos mapuches. Com relação ao fogo no Sul, que consumiu 439 mil hectares e deixou 26 mortos,foi rápido ao declarar estado de calamidade, enviar frequentemente representantes do governo e cancelar suas próprias férias.
Na política externa, não temeu ser tachado de “esquerda covarde”, nas palavras do venezuelano Nicolás Maduro, ao classificar o nicaraguense Daniel Ortega como um “ditador”. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é criticado por não ser tão contundente — ao contrário do vizinho, demorou semanas para dizer que acolheria os opositores deportados e declarados apátridas pelo regime.
O Chile, além disso, registrou inflação negativa em fevereiro, com uma queda de 0,1%, a primeira variação negativa desde novembro de 2020. O resultado contrariou as previsões, que apostavam em um aumento de 0,2% a 0,3%, resultado que reafirma uma tendência de queda.
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As boas novas econômicas, foram anunciadas no mesmo dia que a derrota sofrida pela reforma tributária. Parte da responsabilidade já recai sobre Marcel, o ministro superestrela à frente das Finanças.
O plano do governo era usar o primeiro aniversário para marcar uma virada: deixar para trás um ano difícil e dar o tom do triênio a seguir. Viria com uma nova reformulação do Gabinete, prevista para hoje. Se ainda há esperança, contudo, a derrota mais recente é um incômodo que Boric não terá muito como ignorar.