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Por Marina Gonçalves

Em fevereiro do ano passado, a Colômbia descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação, uma decisão inédita da Suprema Corte após uma petição apresentada pelo movimento Causa Justa, formado por mais de 90 organizações feministas do país. Meses antes, em setembro de 2021, o México havia dado o mesmo passo, também após uma decisão judicial histórica. Na Argentina, após anos de reveses para o movimento feminista, o Senado finalmente aprovou, no fim de 2020, a interrupção voluntária da gravidez (IVE) até a 14ª semana, um projeto enviado ao Congresso pelo próprio presidente Alberto Fernández.

O movimento feminista pró-aborto na América Latina, chamado de "onda verde", começou anos antes, no Uruguai. O país foi o primeiro a garantir o aborto, ainda em 2012, após pressão das mulheres — desde a década de 1980, o procedimento já era permitido em Cuba. Mas não chegou ao Brasil, onde as políticas de apoio aos direitos reprodutivos avançam lentamente, com sérios riscos de retrocessos e descumprimento da lei atual. As discrepâncias são apresentadas no documentário “Verde-Esperanza: Aborto Legal na América Latina”*, de Maria Lutterbach, lançado pelo Curta! na sexta-feira, e em cartaz no Curta!On, que apresenta um panorama do acesso ao aborto seguro no Brasil, na Colômbia e na Argentina. O documentário é uma produção da Gênero e Número, em parceria com a Filmes da Fonte.

— As diferenças ficaram muito claras durante as filmagens. A Argentina [que legalizou antes], já tem um processo muito mais consolidado, com uma formação de profissionais de saúde mais sólida e ampliada, e que chega ao interior do país — conta a diretora. — Já na Colômbia encontramos dificuldades para filmar o atendimento sendo feito, por exemplo. Apesar de ser lei, o estigma permanece. Um ano depois, já existe um movimento conservador atuando para retroceder.

Médico argentino realiza avaliação de jovem de 19 anos, que deseja fazer um aborto seguro em clínica em Buenos Aires — Foto: Reprodução
Médico argentino realiza avaliação de jovem de 19 anos, que deseja fazer um aborto seguro em clínica em Buenos Aires — Foto: Reprodução

O filme mostra um atendimento padrão realizado no sistema público de saúde argentino, no Hospital Evita, no município de Lanús, na Grande Buenos Aires. Em menos de 10 minutos, o chefe do serviço de obstetrícia preenche a ficha de uma jovem de 19 anos, recomenda uma ultrassonografia e alguns exames de sangue. Dois dias depois, ela buscará os resultados e terá duas opções: tomar o medicamento misoprostol, indicado pela Organização Mundial da Saúde para realização de aborto seguro, ou realizar uma aspiração uterina na própria unidade de saúde.

A socióloga argentina Silvina Ramos, coordenadora do Projeto Mirar, que monitora a aplicação da lei no país, fala sobre os avanços desde 2020. Houve um aumento do número de locais que realizam o procedimento: de 900, antes da aprovação, a 1,7 mil até o final de 2020. Além da oferta do misoprostol, os serviços de saúde públicos e privados contam agora com a mifepristona, referência mundial. O Ministério da Saúde argentino também criou uma série de normas técnicas atualizadas para guiar a implementação da lei e desenvolveu capacitações para equipes de saúde, além de um curso disponibilizado na internet de forma gratuita.

Mesmo assim, Ramos destaca alguns problemas: os centros de acesso ao aborto legal não estão distribuídos de maneira equitativa em todo o país, nem todos os profissionais são empáticos ou preparados para o procedimento. Também falta informação para a população em geral.

— A desigualdade do acesso e da qualidade da oferta dos serviços é atualmente o maior desafio — afirma ao GLOBO. — Outro obstáculo é melhorar a qualidade do atendimento, acabar com práticas como a curetagem, totalmente desaconselhada pela OMS e que ainda ocorre no país, além de melhorar questões médico-paciente, com um trato respeitoso e empático. Por fim, é preciso informar mais e melhor a população sobre seus direitos.

Na Colômbia, onde o aborto foi legalizado há apenas um ano, os desafios são ainda maiores. Uma lei de 2006 já permitia o procedimento, mas apenas em casos de estupro, malformação fetal e riscos à saúde materna, inclusive mental.

— Muitos médicos do país cresceram e se formaram em uma época que o aborto não era legal, e não receberam a formação adequada. Hoje o procedimento deveria fazer parte do currículo de Medicina, o que não acontece — diz Laura Gil, do Grupo Médicos pelo Direito a Decidir, que faz parte do movimento Causa Justa. — O sistema ainda está em um processo de transição, porque muitos funcionários e instituições pensam que podem colocar suas posições ideológicas e pessoais à frente do direito ao aborto. Ainda falta esse processo de despenalização social.

Retrocessos

Cada país da região encontrou um caminho diferente até a legalização: na Argentina e no Uruguai, através da luta de movimentos sociais, que pressionaram por anos a aprovação de uma lei no Congresso; na Colômbia e no México, por meio de decisão favorável da Suprema Corte. Assim como nesses dois últimos, onde muitas das recentes decisões que ampliaram os direitos civis e sexuais, incluindo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, vieram do Judiciário, há uma expectativa crescente de que o mesmo ocorra no Brasil.

Por aqui, os movimentos feministas aguardam a discussão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, proposta pelo PSOL, em 2017, que defende a descriminalização do aborto com consentimento da gestante nos primeiros três meses de gestação. A presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, chegou a convocar uma audiência pública com representantes de diferentes setores, mas o julgamento do mérito não foi aberto até hoje. Weber se aposenta em outubro deste ano.

— México e Colômbia tinham antecedentes de longo prazo. Por exemplo, no México, a Cidade do México já havia legalizado o aborto em 2007. A decisão foi questionada e levada à Suprema Corte. Desde então, houve novas leis em outros estados, já que, no sistema federativo do país, cada estado tem sua Constituição penal. Ou seja, a estratégia foi de primeiro promover decisões em nível estadual, que eram ratificadas na Corte. Houve um acúmulo de jurisprudência — explica Sônia Correa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política.

Na Colômbia, onde o procedimento era praticamente proibido, houve mudanças na lei desde 2006. Em maio daquele ano, o aborto passou a ser permitido também quando afetava a saúde física e mental da mulher — o que não significa que ela esteja necessariamente correndo risco de vida, como no Brasil, mas em qualquer situação que produza um estresse psicológico.

— Isso abriu margem para uma interpretação mais ampla e alargou a possibilidade de casos. Aqui, não temos todos esses antecedentes. Apenas uma decisão do Supremo, de 2012, que passou a permitir o aborto em casos de fetos anencéfalos — diz Correa. — Além disso, vivemos um momento de crescimento das forças de direita e ultradireita, que têm na pauta antiaborto um de seus motes principais. Nesse sentido, o contexto politico brasileiro é mais complexo e paradoxal que o colombiano. É preciso garantir que o que está na lei seja cumprido, além de ampliar número e qualidade de serviços. Vimos casos dramáticos, de meninas de 10, 11 anos que levaram a gravidez a termo porque a lei não é cumprida. Há um franco retrocesso desde os anos 2000.

Em 2020, durante o governo de Jair Bolsonaro, o país aderiu ao Consenso de Genebra, uma aliança antiaborto criada pelo então presidente americano, Donald Trump, e na prática liderada por Brasília desde que o democrata Joe Biden assumiu a Casa Branca, em 2021. Em janeiro deste ano, pouco depois de assumir, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva retirou o Brasil da aliança, que visava bloquear votações em fóruns internacionais sobre educação sexual e direitos reprodutivos em geral.

Na região, houve outros retrocessos. No Uruguai, dez anos após a entrada da lei em vigor, movimentos feministas do país vêm denunciando obstáculos, como a pressão de grupos religiosos e a recusa de médicos a realizar o procedimento. O problema é especialmente grave no interior, onde vive metade da população.

No Chile, a Convenção Constitucional chegou a incluir da interrupção voluntária da gravidez no projeto de Constituição elaborado para substituir a atual Carta Magna, herdada da ditadura de Augusto Pinochet. Em setembro do ano passado, no entanto, os chilenos rejeitaram a proposta de nova Constituição, por ampla margem, em um referendo. No país, o aborto é permitido apenas em casos de risco de vida da mãe, inviabilidade fetal e estupro.

— Há uma luta permanente ainda que a legislação avance. Os Estados Unidos são exemplo mais dramático — afirma a diretora do filme.

Nos EUA, o direito da mulher de fazer um aborto até o primeiro trimestre de gravidez era protegido nacionalmente desde 1973, seguindo a decisão da Suprema Corte no caso conhecido como Roe vs. Wade. Em junho do ano passado, no entanto, a Suprema Corte, de supermaioria conservadora, derrubou por seis votos a três o direito, revertendo a histórica decisão.

Segundo a OMS, três em cada quatro abortos são inseguros na América Latina. Em vários países, o procedimento é totalmente proibido: Honduras, Nicarágua, Suriname, Haiti e República Dominicana. El Salvador vai além: em 1998, o país adotou uma legislação drástica, que proíbe o aborto em qualquer circunstância, mesmo quando a gravidez põe a vida da gestante em risco, e a prática é passível de receber uma pena que varia de dois a oito anos de prisão.

* “Verde Esperanza: Aborto Legal na América Latina” será exibido pelo Curta! neste sábado, 11 de março, à 1h e às 16h30m; no domingo, às 23h; na segunda, às 15h; e na terça-feira, às 9h.

O filme também está disponível no Curta!On - Clube de Documentários, streaming do Curta! na Claro TV+ e em CurtaOn.com.br

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