Chefe da Igreja Anglicana, Charles III será coroado rei no próximo dia 6 de maio em missa grandiosa na Abadia de Westminster marcada por ritos religiosos que pouco mudaram ao longo dos séculos. O monarca passa a ser o “defensor da fé” (do latim Fidei defensor) — título inicialmente atribuído pelo Papa Leão X em 1521 a seu antepassado Henrique VIII, antes que ele rompesse com a Igreja Católica e fundasse a Anglicana, pouco mais de uma década depois.
Mas qual fé? Charles tornou-se líder de uma igreja minoritária em um país que já não tem sequer maioria cristã. O dado foi revelado em novembro passado, quando o Escritório Nacional de Estatísticas, o IBGE britânico, mostrou que apenas 46,2% da população da Inglaterra e do País de Gales se reconheciam como tal (desses, somente 15% se dizem anglicanos). Uma década antes, o percentual era de 59,3%. Mais de 38% dos britânicos se dizem agnósticos, de acordo com este último Censo de 2021, que revelou pela primeira vez que os cristãos já não são maioria. Outros 9% afirmavam seguir religiões não cristãs.
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2 mil igrejas a menos
O número de fiéis vem caindo pelo Reino Unido. Vê-se pela quantidade de igrejas que fecharam as portas desde 2011. Foram mais de 2 mil, segundo o instituto Theos. Algumas foram transformadas em galerias de arte, museus ou até mesmo em descolados imóveis residenciais. Ao GLOBO, o especialista Bob Morris, pesquisador honorário da Unidade de Constituição da University College London, afirmou que a explicação para o fenômeno está em dois processos distintos. A secularização da população e o crescimento, a partir dos fluxos de imigração, de novas religiões que vão ocupando espaço no reino. Tudo isso se impõe como um dos maiores desafios do reinado de Charles III, que tenta a todo custo modernizar a imagem da monarquia e adaptá-la aos novos tempos.
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O soberano tem plena consciência das transformações por que passa o país. Logo que foi pronunciado rei, tratou de receber líderes de várias igrejas atuantes no país. Em seu primeiro discurso, ressaltou que serviria a todos os súditos “qualquer que seja sua origem ou crença”. E, na semana que vem, por mais que seja ungido e coroado pelo arcebispo de Cantuária e repita o juramento prescrito pelo Parlamento nos idos de 1689 em que se compromete em “manter e preservar inviolada” a Igreja Anglicana, seus direitos e privilégios, ele terá perto de si representantes de todas as fés. Eles devem entrar na abadia na procissão que antecede a chegada do rei. A ideia é dar ao título carregado desde o século XVI por seus antepassados a interpretação de defensor de todas as crenças e não apenas de uma só, a sua.
— Foi a primeira coisa que quis mostrar quando se tornou rei ao se encontrar com líderes de outras fés. Sua mãe já havia dado sinal semelhante. Essa é a linha dele, o que é muito sensato de sua parte, dadas as mudanças que temos visto. A monarquia vai continuar se adaptando — disse Morris.
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Primeiro-ministro hindu
A maior prova dessas mudanças se reflete no acalorado cenário político nacional. O Reino Unido ganhou em outubro passado seu primeiro chefe de governo hindu, Rishi Sunak, que comanda não apenas o país, mas o Partido Conservador, legenda majoritária no Parlamento britânico. Menos de seis meses depois, foi a vez de a Escócia, parte do reino, escolher seu primeiro chefe do Executivo regional muçulmano: Humza Yousaf, de 38 anos. Há mais tempo, Londres elegeu e reelegeu o trabalhista Sadiq Khan, seu primeiro prefeito muçulmano.
A Igreja Anglicana foi criada por Henrique VIII, depois de romper com Roma por não conseguir do Papa Clemente VII a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão. Cabe ao monarca, por exemplo, nomear formalmente os arcebispos e bispos da Igreja da Inglaterra, que são eleitos por clérigos, leigos e uma comissão com a presença do primeiro-ministro.
Defensora da fé
O número de fiéis está em queda há décadas. E quanto mais jovens, menos religiosos. Entre os britânicos com menos de 27 no país, 64% não têm qualquer religião. Os percentuais são crescentes até entres pessoas na faixa dos 40 anos, algo inédito.
Em 1953, quando da coroação da rainha Elizabeth II, havia apenas um representante não anglicano entre os clérigos presentes, que era o líder da Igreja da Escócia, que presenteou a monarca com uma Bíblia. Com o passar dos anos, a própria soberana entendera as muitas transformações por que passara o reino. No encontro ecumênico realizado no Palácio de Lambeth e organizado pelo arcebispo de Cantuária em fevereiro de 2012, ao falar como chefe da Igreja Anglicana, por ocasião do seu jubileu de diamante, que comemorara suas seis décadas de reinado, ela afirmara:
— O conceito da nossa igreja estabelecida é volta e meia mal interpretado e, eu acredito, em geral, subestimado. Seu papel não é defender anglicanos em detrimento das outras religiões. A igreja tem o dever de proteger a liberdade de se praticarem todas as crenças nesse país.
O livro das orações diárias da Igreja Anglicana para a coração do rei Charles III já inclui também preces para Camilla, a rainha consorte, para desgosto de alguns clérigos. Talvez menos agora do que no passado recente. O fato é que, em 1996, mais da metade dos bispos do país achavam que Charles não deveria se casar com Camilla. Mas eles o fizeram mesmo assim em 2005. À época, cerca de 73% desses religiosos eram contra a mulher do então príncipe herdeiro vir a se tornar rainha um dia.
Cerimônia mais enxuta
Ela será coroada na mesma celebração no dia 6 de maio, por desejo de Elizabeth II, que no ano em que completou 70 anos de reinado anunciou querer que a nora fosse chamada de rainha consorte. Mas Camilla será chamada apenas de rainha, por desejo do marido, e como já indicavam os convites da coroação. A expectativa é que a cerimônia, a pedido do rei, seja mais enxuta e receba cerca de 2.000 convidados entre família, amigos, chefes de Estado (entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva) e chefes de governo. Para a coroação de Elizabeth II, foram 8.250 convidados.
O Reino Unido é a única monarquia da Europa a manter a cerimônia de coroação. Em Bélgica, Luxemburgo e Holanda nunca houve. Na Dinamarca, foi realizada pela última vez em 1840, e na Suécia, em 1873, tendo sido suspensa por questões de custos elevados. Na Noruega, foram proibidas por lei depois de 1905. Na Espanha já não aconteceu desde a unificação de Castela e Aragão em 1469.
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