O presidente da China, Xi Jinping, conversou por telefone nesta quarta-feira com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o primeiro contato conhecido dos dois líderes desde que a invasão russa na Ucrânia começou em 24 de fevereiro do ano passado. Pequim, que se apresentou como um mediador para o conflito e defende neutralidade, é criticada por países ocidentais pelo que consideram ser um apoio tácito dos chineses a Moscou.
Em seu Twitter, Zelensky disse que a ligação foi "longa e significativa" — fontes do governo ucraniano disseram ao jornal britânico Financial Times que a conversa durou aproximadamente uma hora. Desde que o conflito eclodiu, o presidente ucraniano demonstrava interesse em conversar com o líder da segunda maior economia do planeta, sinalizando aguardar um contato de Xi. Previamente, Zelensky já havia feito um convite para seu homólogo chinês visitar Kiev.
"Creio que esta ligação, assim como a indicação do embaixador ucraniano para a China, dará um ímpeto poderoso ao desenvolvimento das relações bilaterais", tuitou o presidente, referindo-se à nomeação do ex-ministro de Indústrias Estratégicas Pavlo Riabikin para a representação diplomática em Pequim, cargo que estava vazio desde fevereiro de 2021.
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De acordo com a imprensa estatal chinesa, os dois líderes discutiram a "crise na Ucrânia", mantendo a postura de Pequim não se referir à invasão russa como uma guerra ou um conflito. Xi disse que a China "está sempre do lado da paz" e afirmou que mandará uma delegação à Ucrânia "e a outros países a fim de manter uma comunicação profunda com todas as partes em busca de uma solução política".
"A China não é responsável pela crise na Ucrânia nem parte dela", Xi teria dito, segundo os registros da imprensa estatal. "O respeito mútuo à soberania e à integridade territoriais é a fundação política das relações entre Ucrânia e China."
A menção à soberania territorial veio dias após o embaixador chinês na França, Lu Shaye, questionar a independência das ex-repúblicas soviéticas sob alegação de que não há acordos internacionais que especifique seus status como nações soberanas — ignorando um reconhecimento oficial que Pequim faz desde 1991. A declaração atraiu fortes críticas de países na Europa e levou os chineses a emitirem uma retratação.
Comentando o telefonema, a Chancelaria russa disse em comunicado que "as autoridades ucranianas e seus aliados ocidentais já demonstraram sua capacidade de estragar quaisquer iniciativas de paz". Reconhecendo os "esforços do lado chinês para estabelecer um processo de paz", a nota diz que Kiev "rejeitou qualquer iniciativa sensata que buscava uma solução política e diplomática".
"O eventual consentimento às negociações é condicionado ao ultimato com demandas evidentemente irreais", disseram os russos, citando a condição ucraniana de que Moscou retire suas tropas dos territórios ocupados de Kherson, Zaporíjia, Donestk e Luhansk, além da Crimeia, ocupada em 2014.
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Os russos referiam-se à iniciativa de paz de 12 pontos que Pequim anunciou no primeiro aniversário da guerra, com suas posições sobre o conflito. O documento pede um cessar-fogo, defende a integridade territorial — sem esclarecer como isso se aplicaria aos territórios ucranianos anexados por Moscou — e oferece benefícios à Rússia com a suspensão das sanções internacionais. Para os ucranianos, a devolução de Kherson, Zaporíjia, Donestk e Luhansk, unilateralmente anexadas no ano passado, e da Península da Crimeia, ocupada em 2014, são inegociáveis.
Kiev e Moscou receberam com reticências a iniciativa chinesa como um ponto de partida, mas o rechaço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar encabeçada pelos EUA, foi rápido.
Xi viajou no mês passado à Rússia e promoveu a iniciativa, sendo recebido por seu "grande amigo" Vladimir Putin, mas vinha sendo pressionado para falar com Zelensky — ponto reforçado pelo presidente francês, Emmanuel Macron, durante sua visita a Pequim no início do mês. Há semanas as conversas entre diplomatas chineses e ucranianos se intensificaram, e o telefonema desta quarta era visto como iminente.
Durante sua passagem pela China, há duas semanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também enfatizou a necessidade de participação chinesa em um possível processo de paz. No entanto, Lula gerou mal-estar diplomático com as potências ocidentais ao dizer que tanto russos como ucranianos têm responsabilidade pelo conflito, desconforto acentuado por declarações do brasileiro que culpavam os EUA e a Europa pelo prolongamento do conflito por fornecerem armas à Ucrânia.
O telefonema desta quarta também coincide com uma passagem do chanceler russo, Sergei Lavrov, pelos Estados Unidos, onde presidiu a sessão do Conselho de Segurança da ONU no início da semana, na sede da organização em Nova York — a chefia do grupo é rotativa entre os cinco membros permanentes e 10 temporários, mudando a cada mês. Diante de Lavrov, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, denunciou a "devastação" no território ucraniano.
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Intensificação dos laços
A China pode ter um papel-chave para uma saída negociada para o conflito frente à cada vez maior dependência econômica que o Kremlin tem dos chineses: em 2022, o comércio entre os dois países aumentou um terço, chegando a US$ 190 bilhões. Ao mesmo tempo, o crescimento das exportações russas para Pequim cresceu 44% — em grande parte devido ao combustível que antes ia para a Europa, vendido com desconto para os chineses — e as importações, 14%.
Putin se escora no apoio chinês também para ter maior credibilidade. A Índia, que acaba de passar a China como o país mais populoso do planeta e busca se firmar como uma terceira opção em meio às disputas sino-americanas, tem uma posição parecida com a chinesa. Boa parte do chamado Sul global também adota maior pragmatismo e evita tomar posições abertas pró-Kiev, esquivando-se de enviar armas e aderir às sanções ocidentais, o que causa frustração nos EUA e seus aliados.
Para os chineses, o Kremlin é um aliado-chave contra o que considera ser um cerco ocidental a seus interesses estratégicos, em especial na Ásia, e no desejo de fazer frente à hegemonia americana com a defesa de uma ordem multipolar. Com relações complicadas durante a Guerra Fria, China e Rússia se aproximaram nos últimos anos em meio ao acirramento das tensões sino-americanas.
Em fevereiro de 2022, pouco antes da invasão da Ucrânia, Xi e Putin se reuniram e anunciaram uma "parceria sem limites" — com a eclosão do conflito, no entanto, a embaixada chinesa nos EUA esclareceu que há um "limite" para a parceria. Por via de regra, a China se abstém em votações na ONU que condenam a guerra. A percepção, contudo, é que a soma de fatores equivale a um apoio tácito a Moscou.
O aceno à Ucrânia faz parte de planos maiores de Xi, que almeja também se consolidar como um estadista, buscando assumir um espaço de influência antes restrito aos EUA, apresentando-se como uma alternativa viável a Washington — planos impulsionados por sua mediação na reconciliação entre Arábia Saudita e Irã. Um possível sucesso do intermédio do conflito russo-ucraniano, portanto, seria um imenso triunfo.
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