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Por Emanuelle Bordallo

Há um mês, o Sudão é palco de uma sangrenta disputa entre dois generais que, no passado, foram aliados no golpe que destituiu um governo civil e destruiu a esperança dos sudaneses de alcançar a democracia após décadas da ditadura de Omar al-Bashir. O saldo dos confrontos, que sitiaram a capital Cartum em 15 de abril, é uma profunda crise que já deixou mais de 750 mortos, 5 mil feridos e forçou 204 mil pessoas a fugirem do país, segundo a ONU.

Os efeitos do conflito, no entanto, ultrapassam as fronteiras do território sudanês, no norte da África. Vizinhos como Chade e República Centro-Africana se veem diante de um fluxo inédito de refugiados enquanto suas populações já enfrentam, historicamente, instabilidades sociais e econômicas — cenário que tende a se agravar com o prolongamento do conflito, segundo analistas ouvidos pelo GLOBO.

Mapa abaixo mostra situação de cada país; clique em cada nome:

Fuga

Antes de o conflito irromper no Sudão, o país já abrigava o maior número de refugiados da África: mais de 1 milhão de pessoas, segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur). Além de abrigar esses muitos estrangeiros, o território do país também já tinha cerca de 3,7 milhões de deslocados internos, isto é, habitantes que forçados a mudar de região para escapar de situações de violência, da fome ou de catástrofes climáticas.

Tal dinâmica, porém, ganhou novos contornos com o início dos confrontos entre os generais Abdel Fattah al-Burhan, líder de facto do Sudão, e Mohamed Hamdan Dagalo "Hemedti", chefe do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (FAR). Uma onda de pessoas partiram para nações vizinhas, incluindo refugiados que viviam no território sudanês e preferiram retornar aos seus países de origem, alguns cuja renda média é de US$ 2 por dia.

Para a porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para a África, Alyona Synenko, será "extremamente difícil para os países absorverem um grande número de refugiados".

— Os países vizinhos enfrentam seus próprios desafios — afirma Synenko, destacando que há importantes rotas de comércio em regiões fronteiriças afetados, o que impacta o abastecimento de ambos os lados. — Antes do conflito, a região já sofria com os efeitos da violência, das mudanças climáticas e da insegurança alimentar. Com a escalada da crise, esses problemas vão ficar muito piores.

O Chade, por exemplo, que recebeu 60 mil refugiados sudaneses no último mês, é um dos países mais pobres do mundo e convive com as tensões na fronteira com Darfur, ao oeste do Sudão, território de um conflito armado ativo que já deixou mais de 400 mil mortos. Outro vizinho com guerras civis em andamento é a Etiópia, que acolheu 2,5 mil migrantes vindos do Sudão após a eclosão do conflito. Desde 2018, os combates na região etíope do Tigré já mataram mais de 600 mil pessoas.

O geógrafo e especialista em continente africano Kauê Lopes dos Santos avalia que, embora não haja risco de que os países vizinhos fechem suas fronteiras para os refugiados uma vez que são signatários do acordo da ONU, o fluxo contribuirá para aumentar a instabilidade política interna.

— A República Centro-Africana, por exemplo, vive um complexo contexto político e é uma região de instabilidade desde 2011 — afirmou, em referência à guerra civil ativa no país que já deixou cerca de 13 mil mortos, segundo estimativas. — A gente tem um claro risco do ponto de vista social. Não sei se vai acontecer como no caso de Ruanda, porque a disputa no Sudão é no campo militar e não tem lastro étnico-racial.

Estado de emergência

A situação dos sudaneses que ficaram é igualmente dramática, mesmo para aqueles que não vivem em zonas quentes de combates. Segundo Isadora Zoni, trabalhadora humanitária brasileira do Acnur que mora em Kosti, no Sudão, todo o país está em estado de emergência após o conflito — que provocou o deslocamento de mais de 700 mil pessoas. Toques de recolher e medidas para evitar estocagem de alimentos estão sendo adotadas mesmo em locais distantes dos confrontos.

— Alguns refugiados estão vivendo em escolas porque, com uma população tão grande, não conseguimos colocar todos em abrigos no momento — afirma Zoni, destacando que cerca de 75% da população sudanesa são formados por mulheres e crianças, aumentando os desafios.

Em meio à falta de itens essenciais como água, alimentos, remédios, combustível e energia, o Sudão ainda enfrenta uma profunda crise financeira, tendo registrado 245% de inflação no ano passado, a mais alta do continente. De acordo com Zoni, o conflito fez com que faltasse dinheiro nas agências bancárias e os preços aumentassem quase 300%.

De acordo com Synenko, a calamidade tem sido especialmente sentida na capital, onde milhares de pessoas estão ficando sem comida, acesso a meios de comunicação e assistência médica, já que apenas 16% dos centros de saúde estão funcionando, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

— Cartum é uma área urbana com milhões de habitantes e os confrontos estão acontecendo bem perto de regiões densamente populosas. Muitas pessoas ainda estão lá porque o aumento nos preços dos combustíveis dificulta as possibilidades de deslocamento — descreve Alyona Synenko. — A nossa maior preocupação é com o acesso aos serviços médicos num momento em que há tantos feridas. Até recolher os corpos das ruas tem sido um desafio.

Santos aponta também os impactos econômicos — e consequentemente sociais — de um conflito de tamanhas proporções em uma capital, algo inédito no Sudão, onde as batalhas costumavam se concentrar em Darfur, no Oeste, e na região Sul.

— O país já está muito quebrado do ponto de vista econômico, se você tira da capital a possibilidade funcional dela, que movimenta toda a economia, haverá um problema significativo para os próximos meses — sinaliza.

O cenário de caos e violência também tem ameaçado o trabalho dos atores humanitários que prestam assistência à população. Organizações como o Acnur esvaziaram seus escritórios em áreas de maior tensão.

— O nosso primeiro desafio tem sido garantir a segurança da nossa equipe; infelizmente três trabalhadores humanitários morreram e isso acendeu uma bandeira vermelha — afirmou Zoni, do Acnur, sublinhando que a organização tem esperanças de que o cenário melhore com o acordo de abertura de um corredor humanitário assinado na quinta-feira.

— Tem sido muito difícil a nossa operação quando há relatos de ameaças contra profissionais de saúde e trabalhadores humanitários — conta Synenko.

Entenda a origem do conflito

A violenta disputa entre os generais al-Burhan e Hemedti teve início após divergências entre os dois sobre a integração dos paramilitares das FAR ao Exército. Em 2021, ambos lideraram o golpe que retirou os civis do poder e depôs o então primeiro-ministro Abdallah Hamdok. Na época, Burhan era presidente do Conselho de Soberania, órgão criado para supervisionar a transição do Sudão para um regime democrático após a queda de Bashir, ditador por três décadas que foi deposto após uma onda de protestos tomar o país em 2019.

Depois do golpe, Burhan tornou-se líder de facto do Sudão e Hemedti assumiu como vice. Chefe da perigosa milícia internacional janjawid, responsável por graves violações no conflito em Darfur, Hemedti tinha a ambição de integrar as forças paramilitares ao Estado, mas seus objetivos não foram bem recebidos pelos militares.

— Hemedti é uma figura ligada a um poder paralelo problemático, mas ao mesmo tempo incorpora um discurso a favor das populações mais vulneráveis do país, incluindo as de Darfur, onde ele ajudou a operar um genocídio — analisa Santos.

Apesar das hostilidades entre os dois terem se tornado públicas nos últimos meses, Zoni afirma que o momento em que o conflito irrompeu pegou muitas pessoas de surpresa.

— A gente vinha monitorando a situação e existia a expectativa de assinatura de um acordo de paz em abril, mas havia rumores de que a situação não seria tão fácil porque ainda existiam atores não alinhados — conta. — Uma das maiores surpresas foi ele ter começado no Ramadã [mês sagrado para os muçulmanos, predominantes no país]. O Sudão é um país tão religioso, acredito que a maior parte das pessoas esperava que, se algo ruim fosse acontecer, não seria nesse período.

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