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Por Thayz Guimarães

Abdijabar deixou sua cidade natal quando completou 17 anos com cinco amigos para perseguir seu sonho de estudar engenharia na Europa. Natural de Borama, na Somalilândia, uma região autônoma não reconhecida no chifre da África, eles percorreram 3.279 km, atravessando Iêmen e Sudão, até chegar à Líbia, no norte do continente, de onde pretendiam tomar um barco para cruzar o Mediterrâneo até a Itália — como fazem dezenas de milhares de pessoas todos os anos. Mas eles não contavam que seriam detidos em um dos vários centros para refugiados administrados pelo Departamento da Luta contra a Migração Ilegal, que são controlados por grupos armados não estatais ou traficantes líbios.

“Fui torturado, os contrabandistas me batiam com uma vara de metal e me obrigavam a comer sal”, lembrou Abdijabar, em depoimento à Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM). “Dois amigos meus morreram de fome.”

O caso não é isolado. A Líbia é um dos principais pontos de partida para africanos que tentam chegar ao continente europeu pela perigosa travessia do Mar Mediterrâneo. Muitos, porém, acabam escravizados ou forçados à prostituição por redes de tráfico humano administradas por facções militares que controlam as áreas costeiras.

Entre janeiro e maio deste ano, o número de pessoas que se aventuraram ilegalmente nesta rota — que parte em direção ao sul da Itália — mais do que dobrou em relação ao mesmo período em 2022, com 50,3 mil casos relatados pelas autoridades nacionais, segundo relatório da Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex) publicado na sexta-feira. A cifra representa um aumento de 160% se comparado ao ano anterior e responde por quase metade de todas as 102 mil entradas irregulares na UE em 2023.

Samater, um jovem somali de 20 anos, integra esta estatística. E assim como Abdijabar, ele deixou sua casa em Borama, na esperança de encontrar uma vida melhor na França, mas também foi retido na Líbia. O pesadelo durou um ano, até que sua família conseguiu pagar os US$ 9 mil cobrados pelos traficantes por sua libertação.

“Eu sobrevivi por acaso. Três de nossos amigos morreram devido a doenças”, comentou em depoimento à OIM. “Eles tinham 24, 22 e 20 anos.”

Rotas de entrada ilegal na União Europeia — Foto: Editoria de Arte
Rotas de entrada ilegal na União Europeia — Foto: Editoria de Arte

Crise humanitária permanente

O problema tem origem nas respostas à crise dos refugiados de 2016, quando estimativas falavam em até 4 mil pessoas chegando ilegalmente à Europa todos os dias. Naquele ano, foram registradas 163 mil entradas na Itália vindas da Líbia, o que provocou uma forte reação política para tentar estancar o fluxo a todo custo. Nesse sentido, a União Europeia lançou em fevereiro de 2017 um plano para treinar e equipar a Guarda Costeira líbia visando interceptar barcos de contrabandistas e manter os migrantes em campos de detenção.

Dois anos depois, as chegadas à Itália chegaram a cair 89%. Mas a política causou um gargalo no outro lado do Mediterrâneo e uma crise humanitária persistente. A OIM estimou que pelo menos 600 mil migrantes permaneciam retidos na Líbia no final de 2022, prontos para serem explorados por grupos armados e traficantes.

— A Líbia apresenta uma instabilidade política muito forte desde a Primavera Árabe e a derrubada do regime de Muamar Kadafi em 2011. Esse movimento, apoiado pela Otan na ocasião, não previu um projeto de centralização política, o que levou à formação de um poder difuso no país, com diversas disputas locais e regionais entre grupos mercenários e jihadistas — explica Kauê Lopes, professor do departamento de geografia da Unicamp e autor do livro “Africano: uma introdução ao continente”. — Toda essa instabilidade faz da Líbia um terreno fértil para grupos paraestatais que lucram com o tráfico de gente.

O país viveu sob a sombra do regime de Kadafi durante 42 anos, um ciclo que chegou ao fim em 2011 com a morte do ditador, em meio à onda revolucionária que ocorreu no Oriente Médio e no Norte da África a partir de 2010. Sua queda, porém, não significou o fim da violência em um país de posição estratégica, nos arredores da Europa Mediterrânea e do Oriente Médio, e rico em petróleo — suas reservas são, de acordo com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a sétima maior do mundo.

De acordo com a agência de refugiados das Nações Unidas (Acnur), após 12 anos de conflitos armados entre os dois grupos principais que disputam o controle da Líbia, o país encontra-se em pedaços, econômica e socialmente: 20% da população de 6,6 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária, 43 mil líbios já registraram pedido de asilo à entidade e mais de 90% dos refugiados que atravessam o Mar Mediterrâneo tentando chegar à Europa saem do país.

Escravidão moderna

O mais recente capítulo desta história começou a ser escrito na quarta-feira, quando uma embarcação superlotada com migrantes que partiram da Líbia virou no sul da Grécia. Autoridades gregas descobriram depois que o naufrágio pode esconder um nebuloso esquema de tráfico humano. Um grupo de sobreviventes identificou nove suspeitos, que escaparam do acidente e agora estão sob custódia da polícia. Segundo relatos, cerca de 100 crianças e mulheres estavam presas no porão do barco de pesca, que levava estimadas 750 pessoas.

— As milícias líbias, que se tornaram os verdadeiros donos do país, controlam os fluxos migratórios e maltratam os migrantes sem nenhuma intervenção por parte das autoridades líbias ou mesmo europeias, que preferem olhar para o outro lado enquanto esses grupos armados irregulares gerem o problema das migrações desta forma — afirma Riccardo Fabiani, diretor de projetos do International Crisis Group para o Norte da África.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU, há mais de três vezes mais pessoas em servidão forçada hoje no mundo do que foram capturadas e vendidas durante o período de 350 anos do comércio transatlântico de escravos. O que a OIT chama de “escravidão moderna” inclui 28 milhões de pessoas em servidão por dívida e 22 milhões em casamento forçado. Como uma indústria ilícita, é uma das mais lucrativas do mundo, rendendo às redes criminosas US$ 150 bilhões por ano, em valores de 2020, atrás apenas do contrabando de drogas e do tráfico de armas.

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