O peronismo — desde a década de 1940 o principal movimento político-social na Argentina — está atravessando uma de suas disputas internas mais ferozes. E corre o risco, alertam especialistas e políticos, de enfrentar em outubro suas eleições gerais mais difíceis desde a redemocratização do país, em 1983. Além da inflação anual acima de 100% e do aumento da pobreza, que já afeta mais de 40% da população, a briga entre suas principais lideranças turva o cenário para a aliança governista. Esta impediu há quatro anos a reeleição do presidente Mauricio Macri (2015-2019), de centro-direita.
Em 2019, o kirchnerismo, liderado pela atual vice-presidente Cristina Kirchner, que governou a Argentina entre 2007 e 2015, se uniu a outros setores do peronismo e escolheu como candidato da aliança Frente de Todos o então chefe de gabinete Alberto Fernández. Assim, o peronismo conseguiu ter um candidato único nas Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), que antecedem a eleição presidencial. Este ano, a grande dúvida é se a aliança governista conseguirá resolver suas tensões internas antes das primárias, e de que modo. Existem duas alternativas: uma negociação e, finalmente, um consenso sobre um único nome, ou uma primária competitiva, como pedem alguns dos que já estão na corrida, principalmente o embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli.
As Paso, que serão realizadas no dia 13 de agosto, definem o candidato de cada partido ou aliança nas presidenciais, além de algumas disputas regionais e legislativas. No ringue peronista, quatro nomes se destacam para a presidência, cada um com seu respectivo padrinho (que, no momento, batem recordes de impopularidade).
Crise econômica avassala Argentina; veja imagens
![Um homem compra frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Em meio a crise, o país criou nova cédula de 2000 pesos argentinos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/ft35TVxgUDPgVhsTMCptwEDg6HQ=/0x0:7197x4798/648x248/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/s/t/CFZoovSbWv3G2CmyzGGw/103002429-a-man-buys-fruits-and-vegetables-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-arge.jpg)
![Um homem compra frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Em meio a crise, o país criou nova cédula de 2000 pesos argentinos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/ws_HrXBDs5IACBzzye7bDIzuRns=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/s/t/CFZoovSbWv3G2CmyzGGw/103002429-a-man-buys-fruits-and-vegetables-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-arge.jpg)
Um homem compra frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Em meio a crise, o país criou nova cédula de 2000 pesos argentinos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
![Um homem procura comida dentro de uma lata de lixo onde frutas e vegetais descartados são depositados no Mercado Central de Buenos Aires. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/4dmF7FOAn-uexSzHs59GqiaCoOs=/0x0:7614x5076/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/B/d/Xx2gRiSCifKkqtRY1x5Q/103008262-topshot-a-man-searches-food-inside-a-trash-can-where-discarded-fruits-and-vegetables-are.jpg)
![Um homem procura comida dentro de uma lata de lixo onde frutas e vegetais descartados são depositados no Mercado Central de Buenos Aires. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/onGKfw_Ob6B9Bgcx7Yjp2cEIJXA=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/B/d/Xx2gRiSCifKkqtRY1x5Q/103008262-topshot-a-man-searches-food-inside-a-trash-can-where-discarded-fruits-and-vegetables-are.jpg)
Um homem procura comida dentro de uma lata de lixo onde frutas e vegetais descartados são depositados no Mercado Central de Buenos Aires. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Publicidade
![Mulheres compram queijo em uma banca do Mercado Central de Buenos Aires. Argentina tem uma das maiores taxas de inflação do mundo. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/e7BnCCmK3ABTXp4qsvNopzJwbHY=/0x0:6919x4613/323x182/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/E/f/FJ0jnbTNOGfBzaopjvLA/103002437-women-buy-cheese-in-a-stall-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-argentina.jpg)
![Mulheres compram queijo em uma banca do Mercado Central de Buenos Aires. Argentina tem uma das maiores taxas de inflação do mundo. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/fUyHIMPeFona5huR-gBa9FfMcqI=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/E/f/FJ0jnbTNOGfBzaopjvLA/103002437-women-buy-cheese-in-a-stall-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-argentina.jpg)
Mulheres compram queijo em uma banca do Mercado Central de Buenos Aires. Argentina tem uma das maiores taxas de inflação do mundo. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
![Uma mulher vende frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Peso argentino sofre constante desvalorização em relação ao dólar americano. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/6Zr0pfdq9GEPTIu3VUGYXqEmQkA=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/A/q/jKj6apRAC4C7eONEsFHg/103002443-a-woman-sells-vegetables-and-fruits-at-the-central-market-in-buenos-aires-on-may-12-2023-a.jpg)
Uma mulher vende frutas e verduras no Mercado Central de Buenos Aires. Peso argentino sofre constante desvalorização em relação ao dólar americano. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Publicidade
![A típica erva-mate argentina também sofreu com a alta de preços devido a crise econômica. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/xF7lerKQnEY3c0rGs-RCpMQywOY=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/a/Y/I1cvRRRHuiXEOT0rQRVQ/103003146-different-brands-of-yerba-mate-are-seen-with-signs-indicating-their-prices-in-argentine-pe.jpg)
A típica erva-mate argentina também sofreu com a alta de preços devido a crise econômica. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
![Com a crise econômica, um quilo de queijo chega a valer mais de 2000 pesos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/4p3MjTYKDynhm0xX_6lpgrQnN5Q=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/e/C/hpuBs1TdSn1CZV1ECfyw/103003170-different-types-of-cheeses-are-seen-with-a-sign-indicating-their-price-in-argentine-pesos.jpg)
Com a crise econômica, um quilo de queijo chega a valer mais de 2000 pesos. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Publicidade
![Vista aérea das avenidas General Paz e Perito Moreno em Buenos Aires, capital da Argentina. — Foto: Luis ROBAYO / AFP](https://s2-oglobo.glbimg.com/YYwTqpDYpp7U2t8GbtX6mWCeewY=/1600x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/3/A/Tp8FrUR5KCTRsIb2Csdg/103002475-aerial-view-of-the-general-paz-and-perito-moreno-avenues-at-dawn-in-buenos-aires-on-may-12.jpg)
Vista aérea das avenidas General Paz e Perito Moreno em Buenos Aires, capital da Argentina. — Foto: Luis ROBAYO / AFP
Clima de guerra
O presidente Fernández apoia Scioli — duas vezes governador da província de Buenos Aires e derrotado na eleição presidencial de 2015 por Macri por menos de dois pontos percentuais. Já o ministro da Economia, Sergio Massa, que não bateu o martelo sobre sua eventual candidatura e conta com o apoio do deputado Máximo Kirchner, filho de Cristina, diz que o governo deve ter candidato único nas Paso. Também ambicionam a candidatura o ministro do Interior, Wado de Pedro, que diz ser o candidato de Cristina, e o chefe de gabinete Agustín Rossi, próximo de Fernández. No momento, o clima, sobretudo entre Massa e Scioli, é de guerra.
- Guga Chacra: A decadência da Argentina
A campanha presidencial ainda não está nas ruas, e os pré-candidatos peronistas não apresentaram programas de governo. O tema central de discussão é mesmo quem será o representante da Casa Rosada na disputa. Até 24 de junho, a governista Frente de Todas, como todos os demais partidos e alianças que pretendem disputar as presidenciais de 22 de outubro, precisam inscrever os candidatos que participarão das Paso.
— Dada a situação que atravessa nosso movimento político, devemos ordenar as candidaturas democraticamente — disse Scioli ao GLOBO, se descolando da posição de Massa, que, internamente, tenta convencer o embaixador a desistir de uma nova candidatura presidencial.
- 'Queriam cortar minha cabeça': Papa Francisco revela que o kirchnerismo tentou colocá-lo na prisão
O ministro considera que uma eleição interna com mais de um candidato enfraquecera ainda mais a Casa Rosada. Nas Paso, cada partido ou aliança pode ter um ou mais candidatos. No caso do partido de extrema direita Avança Liberdade, por exemplo, o único postulante será o deputado Javier Milei. Nestes casos, as primárias acabam funcionando como uma pesquisa certeira.
— Cristina foi quem criou o sistema, por isso sei que não vai se opor a uma primária competitiva — diz Scioli.
O embaixador e pré-candidato representa atualmente a alternativa antikirchnerista dentro da aliança de governo, e conta com o apoio, além de Fernández, de alguns ministros de seu gabinete. Matias Kulfas, que foi ministro da Produção, demitido no ano passado por pressões de Cristina, é um de seus assessores externos, assim como o ex-ministro da Economia Martin Guzmán, afastado na mesma troca de gabinete. Ao GLOBO, Kulfas assegurou que “o ciclo kirchnerista de controle do peronismo terminou”.
Para analistas locais, a possibilidade de vitória peronista à presidência hoje é baixa, mas não nula. Com a opositora aliança Juntos pela Mudança também mergulhada em guerras internas, a Frente de Todos recuperou algum espaço perdido, mas sua maior pedra no sapato é a inflação. Com uma situação econômica cada dia mais deteriorada, qualquer candidato governista terá enorme dificuldade em convencer eleitores não peronistas — que definiram o pleito de 2019 a favor de Fernández — a votarem por uma administração que deixou o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) superar 100% em um ano.
— A eleição mais difícil para o peronismo se aproxima num momento em que o governo não tem resultados para mostrar — explica Ignacio Labaqui, professor da Universidade Católica (Uca).
Para o acadêmico, não está claro, depois do fracassado governo de Fernández, se Cristina vai decidir respaldar de forma contundente um candidato. A ruptura entre ambos, assegura Kulfas, ficou nítida no fim de 2020, quando a vice-presidente divulgou uma primeira carta pública em redes sociais, na qual se referia a “funcionários que não funcionam” de seu próprio governo.
Sem conversa
Kulfas era um dos que estava na mira de Cristina, e acabou saindo do gabinete um ano e meio depois. Desde então, Fernández e Cristina praticamente não se falam.
— O cristinismo, um setor dentro do kirchnerismo, é opositor ao governo — resume Kulfas.
Para Labaqui, “vive-se a longa agonia da Argentina kirchnerista”, mencionando um termo criado pelo historiador Tulio Halperín Donghi, autor do clássico “A longa agonia da Argentina peronista”.
— De certa forma, estamos vendo um fim de ciclo. Mas, a menos que sofra uma derrota esmagadora nas presidenciais, e na província de Buenos Aires, Cristina continuará sendo uma figura importante — acrescenta o analista.
Em meio à troca de farpas entre Fernández e Cristina, que cada vez menciona publicamente menos o presidente e mais a candidatura de Milei, sonhando com um segundo turno entre o ungido governista e o admirador de Donald Trump e Jair Bolsonaro, muitos se perguntam na Argentina se o peronismo conseguirá algum traço de união após as eleições. A ruptura dependerá, opinam analistas, do tamanho do desastre nas urnas.