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Por Gabriela Sá Pessoa, The New York Times

Héctor Abad Faciolince cresceu em uma das cidades mais violentas do mundo. Desde que a Colômbia conquistou sua independência, há mais de 200 anos, ele teve de lidar com instabilidade política, repressão militar e violentos cartéis de drogas. Seu próprio pai, que acusou militares de apoiarem esquadrões da morte, foi assassinado em 1987 por milícias que transformaram sua cidade natal, Medellín, em uma zona de guerra.

No entanto, o primeiro encontro de Abad com a morte aconteceu quando estava a meio mundo de distância.

No mês passado, ao final de uma viagem que fez com dois colegas colombianos na qual esperava ajudar em sua odisseia para obter apoio na América do Sul para a batalha da Ucrânia contra a Rússia, um míssil destruiu o restaurante onde eles tinham acabado de fazer um brinde. Pelo menos 13 pessoas morreram, incluindo sua guia, a escritora ucraniana Victoria Amelina.

— Fiquei chocado ao pensar: eles nos mataram — disse Abad. — Essa foi a última coisa em que pensei.

Quase um ano e meio após a invasão russa na Ucrânia, grande parte da América do Sul tem evitado tomar partido na guerra. A visão de longa data de que uma ordem global multipolar e menos Ocidental é a melhor opção levou os governos a se oporem ao conflito, mas rejeitarem tentativas de isolar a Rússia diplomaticamente, impor sanções econômicas ou fornecer armas à Ucrânia.

Além disso, as pesquisas sugerem que muitos cidadãos percebem a guerra como algo distante demais para se preocupar, criada por duas potências mundiais que estão fazendo o que sempre fizeram: impor sua vontade a países menores.

A rejeição a essa apatia generalizada colocou Abad e dois colegas colombianos — a jornalista Catalina Gómez Ángel e Sergio Jaramillo, ex-vice-ministro de direitos humanos e assuntos internacionais do Ministério da Defesa, que liderou o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — na linha de fogo.

Eles haviam participado de uma conferência literária em Kiev, onde discutiram uma campanha criada por Jaramillo chamada "Aguenta, Ucrânia!", que coletou vídeos de apoio de políticos, intelectuais e artistas latino-americanos, incluindo a escritora chilena Isabel Allende e o cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler. Até o momento, a campanha gerou um número modesto de seguidores: pouco mais de 4 mil pessoas no Twitter e no Instagram.

Mas no final da conferência, disse Jaramillo, o trio queria "realmente levar a campanha para o terreno daqueles que estão sofrendo mais". Amelina se ofereceu para guiá-los por vilarejos na região do Donbass, devastada por conflitos, para documentar histórias de soldados ucranianos e famílias que foram vítimas de crimes de guerra.

Eles esperavam contar essas histórias ao voltar para casa e promover a solidariedade com a Ucrânia, onde, de acordo com Abad, a luta pela soberania ecoa as lutas das nações sul-americanas.

— Quando você defende certas liberdades do Ocidente, da Ucrânia, você também está defendendo as da Colômbia — disse Abad.

Sua turnê terminou em uma terça-feira quente no mês passado em Kramatorsk, a cerca de 32 quilômetros da frente de batalha na cidade devastada de Bakhmut. O Ria Lounge, um dos restaurantes favoritos de Amelina, estava animado e lotado, apesar das autoridades locais terem restringido a venda de bebidas alcoólicas, na esperança de manter as pessoas fora das ruas. Em vez disso, o grupo brindou com cerveja sem álcool e suco de maçã.

— E quando eu o tinha na mão, Victoria brincou, dizendo: 'Parece uísque' — disse ele. — Ela sorriu, eu sorri. E naquele momento não havia sirenes. Não havia apito, não havia nada. Houve algo como uma explosão que eu nunca senti, nunca em minha vida.

Abad, Gómez e Jaramillo sofreram ferimentos leves. Mas Amelina, uma das escritoras jovens mais conhecidas da Ucrânia, morreu no hospital quatro dias depois. Ela tinha 37 anos de idade.

Memorial improvisado no restaurante Rio Lounge após ataque russo — Foto: Mauricio Lima / The New York Times
Memorial improvisado no restaurante Rio Lounge após ataque russo — Foto: Mauricio Lima / The New York Times

O ataque fez com que o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, condenasse publicamente a Rússia pela primeira vez desde a invasão e pedisse ao seu ministro das Relações Exteriores que entregasse uma "nota diplomática de protesto".

No entanto, três semanas depois, em Bruxelas, em uma cúpula de líderes europeus e seus colegas latino-americanos, Petro decidiu seguir uma linha tênue ao discutir a guerra.

Petro atacou o Ocidente com uma tônica comum na América do Sul.

— Sem dúvida, há uma invasão imperial ou imperialista na Ucrânia, mas como você chama a invasão no Iraque? Ou na Líbia? Ou na Síria? — disse ele. — Por que esta tem essa reação e as anteriores neste século não?

O presidente do Chile, Gabriel Boric, um dos poucos líderes sul-americanos a condenar as ações de Moscou, pediu a seus colegas que fossem mais enérgicos.

— Hoje é a Ucrânia, mas amanhã pode ser qualquer um de nós — disse ele durante a cúpula.

Mas a cúpula não avançou mais nessa questão porque os países não chegaram a um acordo sobre como lidar com o conflito. Em sua declaração conjunta, eles não mencionaram a Rússia e limitaram seu comunicado a expressar "profunda preocupação com a guerra em curso contra a Ucrânia".

Muitos líderes sul-americanos têm prioridades mais urgentes, como a estagnação econômica e a inflação descontrolada, e temem as possíveis consequências econômicas de tomar partido. O agronegócio vital do Brasil, por exemplo, é altamente dependente dos fertilizantes russos.

O interesse público também diminuiu. Uma pesquisa recente da Ipsos revelou que a atenção à guerra diminuiu significativamente nos principais países da América Latina, incluindo México, Argentina e Colômbia, em comparação com muitas outras partes do mundo. A maioria das pessoas ouvidas pela pesquisa acredita que os problemas da Ucrânia não são da sua conta e manifestaram pouco apoio para qualquer tipo de intervenção.

Há também uma desconfiança persistente em relação aos EUA, que têm um longo histórico de apoio às ditaduras militares na região. Essas são memórias arraigadas que não devem ser levadas a sério, disse Juan Gabriel Tokatlian, professor de relações internacionais e vice-reitor da Universidade Torcuato Di Tella, em Buenos Aires.

As principais preocupações da América Latina, segundo ele, são a desigualdade, a pobreza e a recuperação da pandemia, bem como evitar um retorno aos dias em que o continente estava preso entre superpotências concorrentes.

— A América Latina perdeu oportunidades de desenvolvimento na Guerra Fria e teve custos dramáticos com a Guerra Fria — disse ele. — Se a mesma lógica for aplicada agora, a memória histórica conta e, para a América Latina, é inaceitável voltar à Guerra Fria.

Mas é exatamente por isso que os simpatizantes da Ucrânia dizem que é crucial que a América Latina se interesse pela guerra. Sergio Guzmán, diretor da Colombia Risk Analysis, uma consultoria política, disse que o conflito pode remodelar o mapa do poder global, e a região corre o risco de ser deixada para trás ao tentar nadar entre duas águas.

— A América Latina quer ter um assento na mesa após a reconfiguração, mas para merecer esse assento de poder, você tem que se envolver — disse Guzmán.

Enquanto os líderes sul-americanos estavam em Bruxelas, a campanha da União Europeia "Ucrânia, aguente firme" pendurou pôsteres por toda a cidade. Cerca de duas semanas após o ataque em Kramatorsk, Abad, Gómez e Jaramillo visitaram a cidade para promover sua iniciativa e participar de uma homenagem a Amelina no Parlamento Europeu.

De volta a Medellín, Abad disse que havia começado a ler a edição em espanhol do romance de Amelina de 2017, "Um lar para Dom".

— É muito divertido e você aprende muito sobre a história da Ucrânia — disse Abad. — É a história de uma família em Lviv. A identidade dos ucranianos é muito complexa porque muitos deles falavam russo (...) e estiveram envolvidos na União Soviética.

Abad disse que esperava que o filho de 10 anos de Amelina conseguisse crescer em uma Ucrânia livre e independente.

— É por isso que eles estão lutando — disse ele. — Espero que eles não percam essa guerra. Porque se a Ucrânia perder essa guerra, será uma guerra que todos nós perderemos.

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