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Por , Em El País — São José, Costa Rica

Apesar de ser uma das candidatas favoritas ao Miss Universo 2023, na reta final do concurso os missólogos não colocavam a Miss Nicarágua, Sheynnis Palacios, nas apostas da transmissão ao vivo. A jovem superou todos os obstáculos até ficar na frente da tailandesa Anntonia Porsild. Para uma miss da América Central, especialmente da Nicarágua, só isso já bastava. Mas, naquela noite de 18 de fevereiro em El Salvador, houve mais do que diamantes e flores para a jovem de 23 anos. Enquanto esperavam o veredicto, as duas modelos deram as mãos e fecharam os olhos: “Nicaráguaaaaaa”, revelou uma voz com sotaque anglo-saxão. Uma nação colada à televisão explodiu em alegria e lágrimas.

Foi, até certo ponto, algo comparável a vencer uma Copa do Mundo para os nicaraguenses, uma conquista nunca antes alcançada. As pessoas imediatamente saíram em massa pelas ruas de várias cidades para celebrar a conquista de uma jovem trabalhadora — e na qual milhares de jovens se viam refletidos — pela sua história de vida: ela vendia buñuelos (uma sobremesa à base de mandioca e requeijão) para pagar a universidade.

As principais estradas de Manágua, a capital, ficaram lotadas de caravanas e o controle policial, que desde os protestos de 2018 — que duraram três meses e foram marcadas por bloqueios nas estradas e confrontos entre opositores e governistas — mantêm uma proibição estrita de qualquer manifestação pública, foi reduzido naquela noite e durante toda a madrugada. Uma celebração única na qual a bandeira da Nicarágua voltou a ser hasteada, apesar da criminalização imposta pelo regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo.

— Quase todas as expressões coletivas na Nicarágua são proibidas e, nesse sentido, até a pólvora usada em festas de todas as classes sociais é proibida. É proibido cantar o hino em espaço público. É proibido sair de casa sem autorização governamental. A população se permitiu encontrar uma questão, que aparentemente não era política, para politizá-la. E saem os fogos, saem as bandeiras, sai a população. São sinais de resistência — explica o sociólogo e analista político Juan Carlos Gutiérrez Soto, exilado na Costa Rica.

O regime em posição desconfortável

A coroação de Palacios colocou o regime sandinista, principalmente o seu aparelho de propaganda, numa posição desconfortável. Dias antes do concurso, a Miss Nicarágua foi alvo de ataques aos programas do Canal 13, dirigidos pelos filhos do casal presidencial. A apresentadora Francelyz Sandoval chamou a jovem de “Miss Buñuelos”, menosprezando os negócios da família da agora Miss Universo.

No entanto, o que mais irritou o partido no poder foi uma foto que viralizou nas redes sociais. Nela, Palacios aparece com bandeiras azuis e brancas ao lado do cantor e compositor nicaraguense Carlos Mejía Godoy, participando das marchas cívicas que ocorreram no país durante as manifestações de 2018. Começaram a chamá-la de “Senhorita Tranquera”, em referência às barricadas erguidas naquele ano pelos manifestantes para se protegerem das ofensivas da polícia e dos paramilitares, que mataram mais de 350 pessoas.

O deputado sandinista e ex-advogado Carlos Emilio López organizou uma campanha nas suas redes sociais contra a jovem. Depois da coroação, ele apagou as publicações — mas já havia capturas de telas de seus ataques. O governo tratou de mascarar sua política de dois pesos e duas medidas enviando Fidel Moreno, um dos homens de maior confiança de Ortega e Murillo, e também a prefeita e o vice de Manágua com buquês de flores para a casa da família da recém-nomeada Miss Universo, na noite de sábado.

Para dois sociólogos nicaraguenses exilados que acompanharam esses acontecimentos, é difícil separar um fato de tamanha relevância pública do político e do social, sobretudo em um país com uma crise sociopolítica tão antiga e tão sofrida para sua juventude. Outra foto da Miss Nicarágua que se popularizou foi mais recente, deste ano: Palacios exibindo com orgulho seu diploma universitário em Comunicação Social, obtido graças a uma bolsa da Universidade Centro-Americana (UCA), que teve seus bens confiscados pelo governo em agosto deste ano, deixando mais de cinco mil estudantes desamparados.

— Em sistemas fechados como o da Nicarágua, as formas de expressão sobre opinião, satisfação, raiva, desconforto, ou até mesmo um simples comentário sobre o que acontece diariamente num sistema repressivo, fazem com que acontecimentos aparentemente inócuos, os quais não têm necessariamente qualquer carga política, sejam utilizados pelos cidadãos para expressarem seus posicionamentos, algo que não conseguiriam de outra forma — observa Gutiérrez Soto.

O sociólogo cita como exemplo os estudantes universitários que em 2018 saíram às ruas para reclamar do incêndio da Reserva Indio Maíz. O movimento social foi o prelúdio de um protesto social massivo em abril daquele ano, que colocou o regime em xeque.

No domingo, um dia após a visita das autoridades managuenses, o governo emitiu um comunicado oficial — que não foi assinado por Ortega nem Murillo — parabenizando Palacios. “A Nicarágua celebra com legítimo orgulho e alegria a coroação de Miss Universo para sua bela representante, Sheynnis Palacios”, disse a nota. No entanto, os esforços do regime para ocultar o seu discurso ambíguo foram duramente criticados pelos nicaraguenses nas ruas e nas redes sociais.

'Golpe destrutivo'

Em uma publicação no X (antigo Twitter) no mesmo dia, o jornalista esportivo e político exilado Miguel Mendoza expôs ainda mais a posição dupla tomada do governo. Na postagem, anexou uma comunicação da Direção de Migração e Estrangeiros, em que negavam a entrada de Palacios no país. No entanto, destacou que após a miss ter vencido a disputa, a decisão foi revogada.

— O regime realmente não tem capacidade de impor o seu discurso e as suas narrativas. Ele não é capaz de manipular os sentimentos das pessoas — afirma a socióloga Elvira Cuadra, que também teve a nacionalidade revogada pelo governo, ao El País. — É por isso que, nesta quarta-feira, Rosario Murillo emitiu outro comunicado, falando de “tentativas maliciosas de manipulação do acontecimento”, quando na realidade a manipulação partiu do regime.

O comunicado lido pela “copresidente” Murillo pede com muitos epítetos que “os vaidosos, os malucos [...] parem de manipular os triunfos merecidos de uma menina bonita para esconder sua insignificância e incapacidade, e nublar, com suas ilusões ridículas e cafonas, nossas águas abençoadas.” O discurso ocorreu 24 horas após o governo ter ordenado a censura de um mural em homenagem a Palacios, na cidade de Estelí.

A polícia obrigou os artistas Kevin Laguna Guevara e Oscar Danilo Parrilla Blandón, conhecidos como Vink Art e Torch Místico, a pintarem de branco a parede com o rosto da Miss Universo sob pena de prisão. Os meios de comunicação locais, citando fontes de diversas instituições públicas, afirmaram que os seus seus superiores lhes deram uma ordem “verbal” para não celebrar a vitória da modelo.

Para os críticos do regime, a coroação de Palacios é vista como um fato “histórico” que oxigena “simbolicamente” um país mergulhado no desespero desde 2018, devido à perseguição política e à crise económica que empurrou quase 700 mil pessoas a buscarem abrigo em outros países, especialmente os Estados Unidos e a Costa Rica.

— Para a população, sair às ruas e ver que é possível fazer alguma coisa, dizer que nem tudo está perdido, injeta esperança em um país que viveu cinco anos de repressão constante. É um bálsamo, uma alegria diante de tanto estresse e dor… Além disso, [é também] uma oportunidade de demonstrar insatisfação através de símbolos proibidos que mostram sua resistência — explica Soto.

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