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“Como explicar a uma mulher aflita que, literalmente há alguns meses, fazia planos com o marido para ter um filho, e que enquanto o marido defendia o Estado e morria, os nossos legisladores o privaram do direito de ser pai após a sua morte?”, escreveu, em uma publicação no Facebook em janeiro, a advogada ucraniana Olena Babych, citando um caso que, em dias, se tornaria uma importante causa política no país.

Olena se referia ao relato de uma mulher que perdeu o marido na guerra contra a Rússia, e que estava sendo impedida por uma nova lei, aprovada em dezembro, de usar o esperma congelado dele em uma inseminação. A queixa viralizou no país, e chegou ao Parlamento, onde uma nova lei, permitindo o uso, deve ser aprovada em breve.

Mais do que ressaltar um tema local, a publicação de Babych serviu para jogar luz sobre uma prática cada vez mais frequente entre militares de nações em guerra: o congelamento de esperma e óvulos antes da ida para o front. Uma forma de garantir uma gestação futura, em caso de acidente ou de morte, e que traz consigo uma série de questões legais e éticas.

Apesar do debate atual, homens e mulheres já congelam há muito tempo seus espermas e óvulos para posterior utilização, por razões de saúde ou escolhas pessoais. Neste contexto, a guerra se tornou mais um fator.

— Por exemplo, o congelamento é feito antes de uma quimioterapia, de uma radioterapia pélvica ou de um procedimento cirúrgico em que vai ser necessário retirar os testículos ou os ovários. Existe também a procura antes da vasectomia, por homens que fazem o procedimento mas eventualmente não sabem se no futuro não vão desejar um novo filho — afirmou ao GLOBO a presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, Paula Andrea de Albuquerque Salles Navarro. — Hoje há uma procura maior por parte das mulheres, por diversos motivos, incluindo adiar a maternidade.

Em estudo publicado em 2020, Ayeh Bolouk e Fatemeh Zal, da Universidade de Shiraz (Irã), concluíram que o estresse e a exposição a substâncias químicas no front contribuem para a infertilidade em homens e entre mulheres mais do que algumas doenças e tratamentos médicos. Ferimentos em membros inferiores, provocados por explosões de minas terrestres ou morteiros, não raro deixam sequelas em órgãos reprodutivos. E, por fim, há o aspecto mais sombrio de conflitos armados: a morte.

Na guerra do Iraque (2003-2011), clínicas no Reino Unido começaram a oferecer descontos para militares que quisessem congelar seus espermas e óvulos antes de viajarem para o Oriente Médio. A procura foi elevada, apesar do alto preço (£300, ou R$ 1,8 mil, em valores atuais) para militares cujo salário anual começava em £16 mil (R$ 100 mil). Nos EUA, o Pentágono chegou a incluir no orçamento de 2016 um plano para custear a manutenção das células reprodutivas, um benefício para atrair recrutas. O gasto foi vetado pelo Congresso naquele mesmo ano.

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Mais recentemente, a Rússia, que há quase dois anos lançou uma guerra contra a Ucrânia, oferece gratuitamente o congelamento de esperma e óvulos a todos militares enviados à linha de frente no país vizinho. Kiev passou a oferecer essa possibilidade no ano passado, mas a legislação, como apontou a advogada Olena Babych, ainda tem suas falhas. Em comum, os dois países enfrentavam mesmo antes do conflito sérias crises demográficas, e há muitos anos tentam, sem sucesso, reverter as quedas em suas populações.

Retirada póstuma

Mas dentre os países cujas Forças Armadas têm políticas de reprodução humana, nenhum tem ações tão inovadoras (ou extremas) como Israel. Em um país considerado vanguarda do setor, uma técnica conhecida como retirada póstuma de esperma é usada há anos em militares e civis para permitir que uma pessoa, mesmo depois de morta, possa ser pai ou mãe de uma criança.

Esse procedimento precisa ser realizado até 72 horas após o falecimento, e as células poderão ser armazenadas por tempo indeterminado, como o material retirado de maneira tradicional. Como apontou a dra. Paula Andrea ao GLOBO, a técnica não está disponível no Brasil, tampouco há previsão para seu uso, mas em Israel há alguns casos emblemáticos.

Em 2002, German Rojkov, um soldado israelense, morreu em um ataque perto da fronteira com o Líbano. Trinta horas depois, células reprodutivas foram retiradas de seu corpo morto e armazenadas por 14 anos, quando foram fertilizadas com os óvulos de Irena Akselrod — apesar de jamais ter conhecido Rojkov, ela se voluntariou para ter a filha do soldado, Veronica. O uso das células só foi possível após uma longa batalha legal movida pelos pais do militar.

Segundo médicos israelenses, os pedidos para esse procedimento dispararam após os ataques do grupo terrorista Hamas, em 7 de outubro do ano passado. Não há números precisos sobre quantas retiradas foram feitas, mas recentemente o Ministério da Saúde flexibilizou as regras sobre o uso do material, permitindo que os pais do morto também possam acessá-lo após um período de, no mínimo, um ano. Além de militares, civis vítimas dos ataques do Hamas também tiveram suas células retiradas, mesmo sem deixar o consentimento para tal em vida.

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Avanços científicos, especialmente os que lidam com a vida, são acompanhados por longas discussões legais, éticas e morais. O diretor do Centro de Direito da Saúde e Bioética do Kiryat Ono College, Gil Siegal, em entrevista à CNN defendeu uma reflexão sobre o uso do material genético de pessoas que não estão mais entre nós: para ele, é necessário pensar “nas implicações da orfandade planejada, motivada pelo pedido dos pais do falecido".

Ao GLOBO, a professora de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia, Amanda Barbosa, reconheceu ser necessário um debate sobre o uso póstumo de material genético, mas vê outras questões à frente da “orfandade planejada”.

— Ao meu ver, o consentimento prévio é ainda mais relevante, embora não desconsidere os impactos psicológicos da ausência de um pai ou de uma mãe no crescimento de um ser humano — afirmou ao GLOBO. — Nós estamos falando de um contexto ético e jurídico que admite que pessoas solteiras sozinhas façam uso da reprodução humana assistida ou que adotem crianças. Então se nós admitimos esse argumento [da orfandade planejada] para impedir o uso do material biológico na reprodução humana seria incoerente.

Para os parentes de pessoas que morreram e tiveram suas células retiradas, cada decisão traz consigo uma carga emocional própria, que deve ser respeitada.

— Eu entendo por que as pessoas dizem “isso é errado”. Mas se você nunca esteve nesta posição, é uma longa jornada. Uma jornada que nunca termina. Eu sou mãe agora, eu lembro do olhar nas faces de meus pais quando estavam enterrando seu filho. E era apenas uma tela em branco — disse ao site Stat News Wendy Ward, cujo irmão, Daniel Christy, teve o esperma retirado e congelado depois de morrer em um acidente de carro, em 2007. — Eu sei que eles não querem que sua história termine. Eu sei o que eles estão fazendo.

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