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Por e , Em The New York Times — Kiev

Aninhada numa floresta densa, a base militar ucraniana parece abandonada e destruída. Seu centro de comando é uma carcaça queimada, vítima de uma barragem de mísseis russos no início da guerra. Mas isso, acima do solo. Não muito longe dali, uma passagem discreta desce até um bunker subterrâneo onde soldados ucranianos rastreiam satélites espiões russos e escutam conversas entre comandantes russos. Numa tela, uma linha vermelha segue a rota de um drone explosivo que atravessa as defesas aéreas russas desde um ponto no centro da Ucrânia até um alvo na cidade russa de Rostov.

O bunker subterrâneo, construído para substituir o centro de comando destruído nos meses após a invasão da Rússia, é um centro nervoso secreto do Exército ucraniano. Há também mais um segredo: a base é quase totalmente financiada e parcialmente equipada pela Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA). "110%", disse o general Serhii Dvoretskiy, um dos principais comandantes de inteligência, em uma entrevista na base.

Agora, entrando no terceiro ano de uma guerra que tirou centenas de milhares de vidas, a parceria de inteligência entre os Estados Unidos e a Ucrânia é peça-chave da capacidade da Ucrânia de se defender.

Há uma década, essa parceria começou a se consolidar, avançando aos trancos e barrancos sob três presidentes dos EUA muito diferentes, impulsionada por indivíduos-chave que frequentemente assumiam riscos audaciosos. Ela transformou a Ucrânia, cujas agências de inteligência eram há muito tempo vistas como completamente comprometidas pela Rússia, em um dos parceiros de inteligência mais importantes de Washington contra o Kremlin hoje em dia.

O relacionamento é tão arraigado que os oficiais da CIA permaneceram em um local remoto no oeste da Ucrânia quando a administração Biden retirou o pessoal dos EUA nas semanas antes da invasão russa, em fevereiro de 2022. Durante a invasão, os oficiais transmitiram inteligência crítica, incluindo onde a Rússia planejava atacar e quais sistemas de armas o país usaria.

— Sem eles, não haveria maneira de resistirmos aos russos ou de vencê-los — disse Ivan Bakanov, que na época era chefe da agência de inteligência interna da Ucrânia, o SBU.

Os detalhes dessa parceria de inteligência, muitos dos quais estão sendo divulgados pelo The New York Times pela primeira vez, foram um segredo bem guardado por uma década. Agora essas redes de inteligência são mais importantes do que nunca, já que a Rússia está na ofensiva e a Ucrânia é mais dependente de sabotagens e ataques de mísseis de longo alcance que requerem espiões muito atrás das linhas inimigas. E eles estão cada vez mais em risco: se os republicanos no Congresso encerrarem o financiamento militar a Kiev, a CIA pode ter que reduzir suas operações.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin — Foto: Aleander Kazakov / Pool / AFP
Presidente da Rússia, Vladimir Putin — Foto: Aleander Kazakov / Pool / AFP

Um começo cauteloso

A parceria da CIA na Ucrânia pode ser rastreada até dois telefonemas na noite de 24 de fevereiro de 2014, oito anos antes da invasão em grande escala da Rússia. Milhões de ucranianos acabavam de derrubar o governo pró-Kremlin do país e o presidente, Viktor Yanukovych, e seus chefes de espionagem haviam fugido para a Rússia. No tumulto, um frágil governo pró-Ocidente rapidamente assumiu o poder.

O novo chefe de espionagem do governo, Valentyn Nalyvaichenko, chegou à sede da agência de inteligência doméstica e encontrou uma pilha de documentos queimando no pátio. Lá dentro, muitos dos computadores haviam sido apagados ou estavam infectados com malware russo. Ele foi para um escritório e ligou para o chefe da estação da CIA e o chefe local do MI6 (serviço de inteligência britânico). Era quase meia-noite, mas ele os convocou para o prédio, pediu ajuda para reconstruir a agência do zero e propôs uma parceria trilateral.

— Foi assim que tudo começou — disse Nalyvaichenko.

A situação rapidamente se tornou mais perigosa. Vladimir Putin tomara a Crimeia. Seus agentes fomentaram rebeliões separatistas que se tornariam uma guerra no leste do país. A Ucrânia estava em pé de guerra, e Nalyvaichenko apelou à CIA por imagens aéreas e outras inteligências para ajudar a defender seu território.

Com a violência aumentando, um avião do governo dos EUA sem identificação pousou em um aeroporto em Kiev trazendo John Brennan, então diretor da CIA. Ele disse a Nalyvaichenko que a CIA estava interessada em desenvolver uma relação, mas apenas a um ritmo com o qual a agência se sentisse confortável, segundo autoridades dos EUA e ucranianas.

O resultado foi um delicado equilíbrio. A CIA deveria fortalecer as agências de inteligência da Ucrânia sem provocar os russos. As linhas vermelhas nunca foram precisamente claras, o que criou uma tensão persistente na parceria.

Em Kiev, Nalyvaichenko escolheu Valeriy Kondratiuk, um antigo assessor, para servir como chefe de contraespionagem, e eles criaram uma nova unidade paramilitar que foi enviada para trás das linhas inimigas para realizar operações e reunir inteligência que a CIA ou o MI6 não forneceriam a eles. Conhecida como a Quinta Diretoria, essa unidade seria preenchida por oficiais nascidos após a independência da Ucrânia.

— Eles não tinham conexão com a Rússia — disse Kondratiuk. — Eles nem sabiam o que era a União Soviética.

Naquele verão, o voo MH17 da Malaysia Airlines, voando de Amsterdã para Kuala Lumpur, Malásia, explodiu no ar e caiu no leste da Ucrânia, matando quase 300 passageiros e tripulantes. A Quinta Diretoria produziu interceptações telefônicas e outras inteligências poucas horas após o incidente que rapidamente colocaram a responsabilidade sobre os separatistas apoiados pela Rússia.

A CIA ficou impressionada e fez seu primeiro compromisso significativo fornecendo equipamentos de comunicação seguros e treinamento especializado para membros da Quinta Diretoria e outras duas unidades de elite.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, discursa em Kiev durante ato para marcar o segundo aniversário da guerra contra a Rússia — Foto: AFP
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, discursa em Kiev durante ato para marcar o segundo aniversário da guerra contra a Rússia — Foto: AFP

'Papai Noel'

Em 2015, o então presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, instalou um aliado para substituir Nalyvaichenko, o parceiro confiável da CIA. Mas a mudança criou uma oportunidade em outro lugar. Na reorganização, Kondratiuk foi nomeado chefe da agência de inteligência militar do país, conhecida como HUR, onde anos antes ele havia começado sua carreira.

A HUR tinha autoridade para coletar informações fora do país, incluindo na Rússia, ao contrário da agência doméstica. No entanto, os americanos não viam valor em cultivar essa agência, pois ela não produzia inteligência valiosa sobre a Rússia e era vista como simpatizante dos russos.

Para construir confiança, Kondratiuk tentou estabelecer uma parceria com a Agência de Inteligência de Defesa (DIA), mas os altos funcionários da DIA estavam desconfiados. Posteriormente, ao visitar a sede da CIA, Kondratiuk entregou documentos secretos sobre a Marinha russa, o que impressionou os analistas da agência e a estabeleceu como principal parceira de Kondratiuk.

O novo chefe da estação da CIA tornou-se próximo de Kondratiuk, impulsionando o relacionamento entre as duas agências, e recebeu o apelido carinhoso de "Papai Noel" dos ucranianos.

Agora a parceria era real.

Operação Peixe Dourado

Hoje, a estrada estreita que leva à base secreta é cercada por campos minados, semeados como linha de defesa nas semanas após a invasão da Rússia. Os mísseis russos que atingiram a base aparentemente a haviam fechado, mas apenas algumas semanas depois os ucranianos voltaram.

Com dinheiro e equipamento fornecidos pela CIA, equipes começaram a reconstruir, mas embaixo da terra. Para evitar detecção, eles só trabalhavam à noite e quando os satélites espiões russos não passavam. Os trabalhadores também estacionavam seus carros a certa distância do local de construção.

Além da base, a CIA também supervisionou um programa de treinamento, realizado em duas cidades europeias, para ensinar oficiais de inteligência ucranianos a assumir personas falsas de forma convincente e a roubar segredos na Rússia e em outros países que são adeptos a descobrir espiões.

O programa era chamado de Operação Peixe Dourado, que derivava de uma piada sobre um peixe dourado que fala russo e oferece a dois estonianos desejos em troca de sua liberdade. A piada terminava com um dos estonianos esmagando a cabeça do peixe com uma pedra, explicando que qualquer coisa que falasse russo não poderia ser confiável.

Muitas vezes, leva anos para a CIA desenvolver confiança suficiente em uma agência estrangeira para começar a realizar operações conjuntas. Com os ucranianos, levou menos de seis meses. A nova parceria começou a produzir tanta inteligência bruta sobre a Rússia que ela precisava ser enviada para a sede da CIA para processamento.

Trump e eleições

Após a eleição de Donald Trump em novembro de 2016, os ucranianos e a CIA mantiveram uma parceria secreta, apesar das incertezas geradas pelas declarações do presidente. Trump elogiava Putin e minimizava o papel da Rússia na interferência eleitoral. Ele desconfiava da Ucrânia e, mais tarde, tentou pressionar seu presidente, Volodymyr Zelensky, a investigar seu rival democrata, Joe Biden, resultando no primeiro impeachment de Trump.

Mas independentemente do que Trump dizia e fazia, sua administração frequentemente seguia na direção oposta.

Vladimir Putin e Donald Trump se cumprimentam durante encontro do G20 em 2017 — Foto: Saul Loeb/ AFP
Vladimir Putin e Donald Trump se cumprimentam durante encontro do G20 em 2017 — Foto: Saul Loeb/ AFP

A parceria se expandiu, resultando na construção de mais bases secretas, de 80 para 800 oficiais, e programas de treinamento especializados. Prevenir a interferência da Rússia em futuras eleições dos EUA era uma prioridade máxima da CIA durante esse período, e funcionários de inteligência ucranianos e americanos uniram forças para investigar os sistemas de computador das agências de inteligência da Rússia para identificar operativos tentando manipular os eleitores.

Além disso, a CIA buscou replicar essa colaboração com outros serviços de inteligência europeus. Uma reunião secreta em Haia resultou na formação de uma coalizão clandestina contra a Rússia, na qual os ucranianos desempenharam um papel crucial.

Invasão

Em março de 2021, a Rússia começou a concentrar tropas na fronteira com a Ucrânia, levantando dúvidas sobre uma possível invasão. À medida que os meses passavam e mais tropas cercavam o país, a questão era se Putin fazia apenas um movimento tático ou se preparava para a guerra.

Em novembro daquele ano, a CIA e o MI6 alertaram a Ucrânia sobre a iminente invasão russa para derrubar o governo e instalar um fantoche pró-Rússia em Kiev.

As agências de inteligência dos EUA e do Reino Unido tinham interceptações que as agências de inteligência ucranianas não tinham acesso, de acordo com autoridades americanas. A nova inteligência listava os nomes de funcionários ucranianos que os russos planejavam matar ou capturar, bem como os ucranianos que o Kremlin esperava instalar no poder.

Apesar dos alertas, o presidente Zelensky e seus assessores pareciam céticos. Enquanto a invasão se aproximava, oficiais da CIA e do MI6 se reuniram com os ucranianos em Kiev, e alguns agentes da CIA foram realocados para o oeste da Ucrânia, recusando-se a deixar seus parceiros.

Cooperação continuará

Após o início da invasão russa, os agentes da CIA permaneceram como a única presença do governo dos EUA no solo ucraniano, reunindo-se diariamente com seus contatos locais para compartilhar informações. Com o aval da Casa Branca de Biden, as agências de inteligência foram autorizadas a fornecer suporte para operações letais contra as forças russas na Ucrânia, levando a relatórios detalhados e específicos por parte da CIA sobre os planos russos para as semanas seguintes, incluindo tentativas de assassinato de autoridades ucranianas e bombardeios planejados em cidades.

O estreitamento da parceria entre a CIA e os serviços de inteligência ucranianos resultou em operações conjuntas altamente eficazes, como a interrupção de um complô contra o presidente Zelensky e a destruição de comboios russos identificados por espiões ucranianos e confirmados por agências de inteligência britânicas e americanas.

A CIA desempenhou um papel fundamental no fortalecimento da capacidade de inteligência da Ucrânia, auxiliando na formação de redes de informantes, operações clandestinas e na defesa contra ataques russos, incluindo a instalação de sistemas de defesa antiaérea e de filtragem de ar contra armas químicas em bunkers subterrâneos.

Apesar das incertezas sobre o compromisso contínuo dos EUA em meio a considerações de cortes de ajuda financeira por parte dos republicanos na Câmara, a CIA reiterou seu compromisso com a Ucrânia, destacando a importância estratégica da parceria e reforçando que a cooperação continuará.

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