Mesmo diante da ameaça de prisões em massa, uma multidão se reuniu nesta sexta-feira para prestar homenagem e se despedir de Alexei Navalny, que morreu em uma prisão no Ártico, aos 47 anos. O funeral do principal opositor do presidente Vladmir Putin ocorre duas semanas após o anúncio da sua morte, de críticas à demora na liberação do corpo e de denúncias contra Putin, acusado de ter ordenado sua morte, e chamado de "assassino" ao longo da cerimônia.
O caixão chegou à igreja Mãe de Deus “Apague Minhas Dores”, em Marino, distrito no sul de Moscou, embalado por gritos de "Navalny", aplausos e, segundo o jornal Meduza, "Não iremos perdoar!". O presidente Vladimir Putin também foi lembrado — vídeos mostram dezenas de pessoas pedindo uma "Rússia sem Putin", além de chamá-lo de "assassino". A polícia observou à distância, inclusive quando alguns começaram a entoar gritos de ordem pedindo o fim da guerra, algo que pode levar a uma inevitável visita à delegacia e, em último caso, alguns anos de prisão.
Em uma área restrita, estavam os pais de Navalny, Lyudmila e Anatoly, além de amigos e parentes — os embaixadores da União Europeia e dos Estados Unidos em Moscou, além dos políticos de oposição , bem como os políticos Boris Nadejdin, Daria Duntsova — ambos impedidos de concorrer na eleição presidencial de março — e Evgeny Roizman também estiveram no local para prestar homenagens. Por volta das 16h, ao som primeiro de "My Way", de Frank Sinatra, e da música final de "Exterminador do Futuro II", o caixão foi sepultado, e o local posteriormente liberado para o público.
— Foi por causa dele que comecei a me envolver na política. Ele foi a primeira pessoa pública a quem dei ouvidos — afirmou Denis, de 26 anos, voluntário em uma instituição de caridade, à AFP.
Desde as primeiras horas do dia, cercas foram colocadas ao redor da igreja e uma passagem foi deixada aberta para que o caixão pudesse ser transportado. Policiais e veículos da organização contra tumultos estavam presentes em peso, e o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, citado pela agência de notícias Tass, disse que qualquer reunião "não autorizada" será considerada uma "violação da lei", salientando que aqueles que estiverem participando dela serão "responsabilizados".
Isso não impediu que uma multidão ainda não estimada fosse a Marino, enfrentando a baixa temperatura e uma fila que continuou horas depois do sepultamento. A polícia afirmou que a entrada para o cemitério de Borisovo — que chegou a ser fechado momentaneamente — seria permitida em grupos de cinquenta pessoas por vez. Aqueles que não conseguiam entrar montavam memoriais improvisados nos arredores, seguindo instruções da própria equipe de Navalny.
Desde a morte do ativista, em 16 de fevereiro, mais de 380 pessoas foram detidas em atos e homenagens que tomaram o país. Muitos estavam reunidos ao redor de memoriais espontâneos, com pessoas depositando flores e fotos de Navalny nas calçadas, algo comum após a morte de figuras políticas russas. Muitas das prisões ocorreram em São Petersburgo, base política de Putin.
— Pessoas como ele não deveriam estar morrendo: honestas e com princípios, dispostas a se sacrificar — disse Anna Stepanova, uma das pessoas em luto que se reuniram do lado de fora da igreja. — Eles próprios estão com muito medo. As pessoas que vieram aqui não estão com medo. Alexei também não estava.
Detidos enquanto deixavam flores
Além dos agentes da conhecida Omon, a força policial responsável por controlar protestos, policiais estavam presentes não apenas nas ruas, mas também ao lado dos memoriais improvisados, que parecem ter sido autorizados ao menos nos arredores do funeral. Mas o mesmo não se pode dizer de outras cidades ao redor da Federação Russa. De acordo com a ONG OVD-Info, que monitora prisões e abusos cometidos pelas forças de segurança no país, foram registradas 128 prisões apenas nesta sexta-feira. Monumentos em Tomsk e Vladivostok, que poderiam ser usados para abrigar memoriais, foram fechados ou bloqueados sob pretexto de "reformas".
Em Novosibirsk, maior cidade da Sibéria, 31 pessoas foram detidas, e ao menos 17 seguem sob custódia das autoridades. Em Ecaterinburgo, na região dos Montes Urais, foram 19 os detidos, enquanto em Voronej, cidade próxima à fronteira com a Ucrânia e que com frequência é atingida por ataques, 4 pessoas foram presas. Há relatos de 17 detenções em Moscou, algumas delas no metrô: o vice-presidente do Partido Democrático Unido Russo Yabloko (do qual Navalny foi expulso), Alexei Morev, e o ex-vice-presidente do partido PARNAS, Mikhail Shneider.
Homenagens também foram feitas em outros países Flores e cartazes foram depositados em frente às embaixadas da Rússia na Alemanha, Holanda e no Reino Unido. O Comitê Norueguês de Helsinque, a Anistia da Noruega, a Natur og Ungdom e outros grupos e organizações também deixaram flores em memória a Navalny e outros que foram mortos ou seguem presos por enfrentarem as autoridades. Desde a morte do ativista, embaixadas russas têm sido cenário de homenagens e protestos contra o Estado russo e contra o presidente Vladimir Putin.
'Ideias continuarão vivas'
Alexei Navalny ganhou destaque por seu discurso anticorrupção, que viu no regime comandado por Putin, inundado em alegações de desvios de dinheiro público, um alvo perfeito. Em 2011 e 2012, liderou, ao lado de outros nomes da política russa, como Boris Nemtsov (assassinado a alguns metros do Kremlin em 2017), um movimento que levou milhares de pessoas às ruas, e que marcou uma espécie de virada repressiva do governo Putin.
Sem poder se candidatar à Presidência, manteve suas atividades apesar da pressão oficial, da classificação de "extremista" e, em 2020, de uma tentativa de assasinato com um agente químico soviético, o Novichok.No ano seguinte, retornou à Rússia e nunca mais caminhou livremente pelas ruas: imediatamente foi levado a um tribunal, onde foi preso por acusações de fraude, feitas anos antes, e, posteriormente, por extremismo, que o levaram a uma pena de 19 anos de prisão.
Nos anos no cárcere, Navalny com frequência se queixou de maus tratos, e chegou a realizar uma greve de fome para cobrar acesso digno a serviços médicos. As transferências eram recorrentes, e após quase uma semana de silêncio, no final do ano passado, foi anunciado que ele estaria em uma prisão no isolado Ártico russo, onde as temperaturas não raro passam dos -40ºC.
Segundo o Serviço Penitenciário Federal russo, o ativista "sentiu-se mal após uma caminhada, perdendo quase imediatamente a consciência" na sexta-feira, 16 de fevereiro. Sua equipe, no entanto, rebate a informação, revelando na segunda-feira que havia negociações informais avançadas para trocá-lo por um prisioneiro russo de grande valor, detido na Alemanha. Na visão da presidente da Fundação Anticorrupção (FBK) do opositor, Maria Pevchikh, Putin ponderou que não poderia "tolerar que Navalny fosse libertado".
Nesta sexta, enquanto Navalny era sepultado, a Comissão de Monitoramento Público da Rússia afirmou que, após inspeção, não foram encontradas irregularidades na colônia penal de Kharp, onde estava o ativista. Em entrevista à Interfax, Danil Gontar elogiou a qualidade e a diversidade da comida, e afirmou não ter recebido queixas.
— Os resultados não são significativamente diferentes dos anteriores. Conferimos as condições e as recomendações. Não há violações significativas — disse Gontar à Interfax. Ao ser questionado se a morte de Navalny foi levantada durante a inspeção, ele respondeu que não.
Acusações que ligam o líder russo à morte do opositor também foram feitas por diversas autoridades internacionais, entre eles o presidente dos EUA, Joe Biden, e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel. O Kremlin rebateu todas as "acusações grosseiras", chamando-as de "absolutamente inaceitáveis" e "histéricas". A advogada e viúva do opositor, Yulia, acusou diretamente Putin pela morte do marido e declarou que dará continuidade ao seu trabalho. Vivendo na Alemanha, a viúva prestou uma homenagem ao marido nas redes sociais: "Não sei como viver sem você, mas tentarei sempre tentar me fazer feliz por você, e orgulhosa de mim."
O corpo de Navalny foi mantido em um necrotério por oito dias antes de ser devolvido à família, o que sua equipe acredita ser uma tentativa de encobrir a responsabilidade por sua morte. Parentes e sua equipe acusaram as autoridades de tentar impedir um enterro público digno, temendo que ele pudesse se transformar em um foco de dissidência.
Para outros, vivo ou morto, o opositor segue vivo naqueles que ficam. Na visão da arqueóloga Alyona, de 22 anos, Navalny morreu, "mas suas ideias continuarão vivas graças àqueles que se reuniram aqui." (Com AFP)
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