O Vaticano emitiu, nesta segunda-feira, um novo texto no qual denuncia o aborto e a “teoria de gênero”, afirmando que qualquer cirurgia para mudança de sexo corre o risco de ameaçar a “dignidade única” de uma pessoa. O documento, intitulado “Dignidade Infinita”, foi assinado e aprovado pelo Papa Francisco em março e disserta sobre o que descreve como uma série de ameaças à dignidade humana, incluindo pobreza, pena de morte, guerra, morte assistida e abuso sexual.
Com quase 20 páginas, o documento pode ser lido como uma forma de apaziguar as divisões dentro da Igreja, quatro meses após o escândalo em torno da instauração de bênçãos para casais homoafetivos, especialmente entre os mais conservadores.
Pela primeira vez de forma tão específica, o Vaticano denuncia veementemente a "teoria de gênero", que Francisco chama de "colonização ideológica muito perigosa", segundo a concepção de que as nações ricas impõem pontos de vista — sejam sobre gênero ou barriga de aluguel — sobre pessoas e tradições religiosas que não necessariamente concordam com eles.
“Qualquer intervenção de mudança de sexo, como regra, corre o risco de ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção”, diz o texto, concluindo que tentativas de “obscurecer a diferença sexual entre homem e mulher” devem ser rejeitadas.
As pessoas que desejam "uma autodeterminação pessoal, como prescreve a teoria de gênero", correm o risco de sucumbir "à antiga tentação de se tornar Deus", colocando o individualismo acima da natureza.
A Igreja ressaltou, porém, que pessoas LGBTQIA+ devem ser respeitadas, denunciando que, “em alguns lugares, muitas são presas, torturadas e até privadas do bem da vida apenas por sua orientação sexual”. Uma parte do texto também é dedicada à violência de gênero, afirmando que "nunca será suficientemente condenada".
— Pouco se fala sobre esta violação dos direitos humanos (…) e é doloroso que alguns católicos defendam estas leis injustas — lamentou em entrevista coletiva o prefeito do Dicastério, o cardeal argentino Victor Manuel Fernández, próximo do Papa e signatário do texto.
Corda bamba
O Papa já havia se manifestado contra a “ideologia de gênero” no passado, afirmando que ela busca apagar as distinções entre homens e mulheres. Agora, o documento vai além e afirma que a teoria de gênero “pretende negar a maior diferença possível que existe entre os seres vivos: a diferença sexual”, que seria “a mais bela e poderosa delas”. O texto pontua, no entanto, que a intervenção médica é permitida em casos de “anormalidades genitais”.
Defensores dos direitos das pessoas LGBTQIA+ dentro da igreja temem que o documento possa ser mais um mecanismo usado contra pessoas trans.
— O Vaticano está novamente apoiando e propagando ideias que levam a danos físicos reais a transgêneros, não binários e outras pessoas LGBTQIA+ — afirmou Francis DeBernardo, diretor executivo do New Ways Ministry, grupo que defende os católicos gays.
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Embora o documento seja um claro retrocesso ao movimento, o Vaticano se esforça para encontrar um equilíbrio entre a proteção da dignidade humana pessoal e os ensinamentos da igreja, uma corda bamba na qual Francisco tem tentado se equilibrar durante seus 11 anos de papado.
O Pontífice, por exemplo, ofereceu apoio pastoral aos católicos transgêneros. Ele esteve com um grupo de fiéis trans, convidado para um almoço no Vaticano ao lado de 1,2 mil pessoas marginalizadas — que receberam lugares na primeira fila em uma das audiências. O escritório de doutrina do Vaticano permitiu ainda que pessoas trans atuem como padrinhos em batismos e testemunhas em casamentos, mudança graças a uma decisão de 2015.
— Em termos de consequências pastorais, o princípio de acolher a todos está claro nas palavras do Papa Francisco — observou o cardeal Fernández.
Aborto e barriga de aluguel
Sobre o aborto, o documento reitera o que o Pontífice já havia dito no passado: que a “defesa da vida não nascida está ligada à defesa dos direitos humanos”. Segundo o texto, a "aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei" reflete "uma crise de mentalidade muito perigosa".
Em relação à barriga de aluguel, o documento declarou inequivocamente sua oposição ao que, segundo a Igreja Católica, “viola” a dignidade da criança e da mulher e entra em “contradição com a dignidade fundamental de cada ser humano” — quer a gestante tenha sido coagida, quer tenha se submetido ao procedimento livremente. O Vaticano, que também se opôs à fertilização in vitro, afirmou que a barriga de aluguel torna a criança "um mero meio subserviente ao ganho arbitrário ou ao desejo de outros".
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O Vaticano reconheceu que estava tocando em questões difíceis, mas disse que, em um momento de grande tumulto, era essencial, e esperava-se benéfico, que a Igreja reafirmasse os seus ensinamentos sobre a centralidade da dignidade humana.
Cinco anos de trabalho
O novo documento, resultado de cinco anos de trabalho, foi publicado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, órgão da Santa Sé encarregado do dogma que lista casos de “violações concretas e graves” da dignidade. O "Dignidade Infinita", que começou a ser construído em março de 2019, foi um texto pensado para levar em consideração os "mais recentes desenvolvimentos sobre o assunto no meio acadêmico e as formas ambivalentes em que o conceito é entendido hoje".
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Em 2023, Francisco devolveu o documento com instruções para "destacar tópicos intimamente ligados ao tema da dignidade, como a pobreza, a situação dos migrantes, a violência contra as mulheres, o tráfico humano, a guerra e outros temas", como ecologia, justiça social e questões relacionada à bioéticas ou à violência na internet.
O documento foi assinado pelo Papa em 25 de março, e o longo caminho, escreveu o Cardeal Fernández, "reflete a seriedade" do processo. (Com AFP e NYT)
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