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Por — Johannesburgo

Pesquisadora da Universidade de Cidade do Cabo, a principal do país, a antropóloga e escritora brasileira Laura Moutinho já se sente em casa quando cruza o oceano toda vez que tem uma missão na África do Sul. A mais recente é contribuir com o monitoramento das eleições, daqui a um mês, que prometem agitar a cena política em meio às comemorações dos 30 anos da democracia e do fim do apartheid.

Em entrevista ao GLOBO, Moutinho, que também é professora livre-docente do Departamento de Antropologia da USP, revisita alguns fantasmas do apartheid para dar uma noção dos processos pelos quais o país sul-africano precisou passar para chegar aos tempos atuais, em que ainda há muito por fazer. “Observo, sobretudo, o que ficou enquistado, apesar de todo o esforço da geração de Nelson Mandela (...) para construir uma ordem moral humanista, no sentido de sustentar a democracia”, afirma Laura que também é pesquisadora visitante na Stellenbosch University e visiting Research Sênior pelo CAPES/PRINT na University of Cape Town (UCT) pesquisando e procurando construir parcerias e acordos de cooperação internacional com a USP.

Quais as consequências internas e externas do apartheid para os grupos étnicos no país?

O apartheid é conhecido pela sua face pública: praias separadas, bairros segregados, bibliotecas, piscinas, escolas, banheiros... O que fica menos evidente para o público em geral é que o objetivo mais amplo foi evitar a miscigenação, entendida como um processo de destruição física e cultural, de aniquilação mesmo [dos negros]. A plataforma de governo do Partido Nacional foi, de um lado, criminalizar os casamentos inter-raciais, de outro, “proteger” os brancos africânderes das ameaças externas que eram então entendidas como o capitalismo, o imperialismo, o comunismo e os judeus. Os coloureds, como são chamados os mestiços, foram então sendo empurrados para uma construção étnica, cultural e linguística específica. Muitas famílias multirraciais foram separadas a partir desta dinâmica. A separação agiu de modo microscópico no cotidiano. O processo de construção da segregação levou ao desenvolvimento de uma concepção militarizada, racial, religiosa e de gênero de cidadania.

Na sua opinião qual foi o “mal maior”, entre tantos outros, do regime de separação?

Hendrik Verwoerd, nacionalista africânder, nomeado pela História como o “arquiteto do apartheid”, queria implantar o conceito tão profundamente na sociedade de modo que nenhum governo futuro seria capaz de desfazer o que havia sido feito. Eles em parte conseguiram isso. Os que acreditaram na democracia, implantada em 1994, desafiavam justamente essa ordem moral, apostando na possibilidade de se conviver com as diferenças, de diminuir o fosso da desigualdade social e de se elaborar um sistema jurídico igualitário, no qual todos os cidadãos seriam iguais perante a lei.

Policial interage com dois meninos durante uma operação multidisciplinar enquanto eles procuram armas de fogo e drogas ilegais em Westbury, a oeste de Johannesburgo — Foto: Shiraaz Mohamed/AFP
Policial interage com dois meninos durante uma operação multidisciplinar enquanto eles procuram armas de fogo e drogas ilegais em Westbury, a oeste de Johannesburgo — Foto: Shiraaz Mohamed/AFP

E para isso, qual foi a espinha dorsal do regime?

Entendo como espinha dorsal o esforço de evitar a miscigenação aqui entendida como aniquilamento. O objetivo era regular a intimidade e moralizar o espaço público, visando a um horizonte de segregação total.

Como se deu o movimento que deu sustentação à oposição para que o regime passasse a ser confrontado?

O apartheid tem um devir suicidário, assim como o nazismo também tem. Operar racialmente leva a um beco sem saída. Mas muitos são os fatores que levaram ao fim do regime, e eu destaco a inquebrantável oposição, sobretudo dos negros e coloureds [mestiços] sul-africanos que receberam apoio de muitos brancos. Mas queria chamar atenção também para os chamados países da linha de frente. Houve um forte trabalho de oposição na própria África Austral: Zâmbia, Tanzânia e Botsuana, Angola, Moçambique e Zimbábue construíram uma linha de frente para apoiar as lutas de libertação em seus países e nos vizinhos.

Há quantos anos a senhora estuda a África do Sul e qual sua relação com o país?

Estive na África do Sul pela primeira vez em 1999 e desde então conduzo pesquisas no país. Na ocasião, havia apenas uma tese defendida por um pesquisador brasileiro, e hoje me alegro de ter hoje várias pesquisadoras, todas mulheres, de graduação, mestrado e doutorado pesquisando no país. Nós estamos inclusive monitorando as eleições. Isso tem sido possível graças aos apoios da FAPESP, do CNPq e da CAPES. O deslocamento e a pesquisa são bastante custosos. Na USP, defendi a tese de livre-docência que irá ser publicada este ano pela editora Papéis Selvagens, com o título "Unidos pelo racismo: apartheid, religião e democracia na extrema-direita sul-africana".

Hoje observo sobretudo o que ficou enquistado, como um quisto mesmo, apesar de todo o esforço da geração de políticos como Nelson Mandela, Desmond Tutu, Mamphela Ramphele para construir uma ordem moral humanista, no sentido de sustentar a democracia. Vou atrás do que não mudou. Ou seja, aqueles infensos à transformação: uma extrema direita que continua rezando, desejando e esperando pela volta do regime de segregação.

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