Mundo
PUBLICIDADE
Por — Caracas

RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 02/08/2024 - 11:16

Revolta popular na Venezuela: classe média cede espaço para os pobres contra o chavismo

Uma jornalista observa a mudança na Venezuela, com pobres substituindo a classe média na revolta contra o chavismo. A migração de votos do chavismo para a oposição reflete insatisfação com Maduro, marcando uma revolta social inédita. A classe média diminuiu, e a burguesia bolivariana domina, enquanto a líder opositora María Corina ganha apoio emocional dos setores populares. O chavismo enfrenta pressão internacional e um futuro incerto, com a possibilidade de repressão crescente.

Na primeira viagem que fiz a Caracas, em abril de 2002, para cobrir um golpe contra o então presidente Hugo Chávez (1999-2013), uma das reportagens obrigatórias em campo era visitar os chamados bairros caraquenhos, as favelas da capital venezuelana, para fazer o que chamamos de “fala povo” e entender qual era o sentimento das classes mais baixas sobre o líder bolivariano. Naquela viagem, visitei os bairros de Petare, considerada a maior favela da América Latina, e 23 de Janeiro, onde está localizado o Quartel da Montanha 4F (em referência à tentativa de golpe de Estado de 4 de fevereiro de 1992, comandada pelo ex-presidente) e, desde março de 2013, enterrado Chávez. Ouvi depoimentos diversos, mas, em todos os casos, de elogio, lealdade e apoio ao chavismo. Para quem conheceu o culto a Chávez em seu auge — um mito vivo —, foi surpreendente e impactante ver moradores desses mesmos bairros, e de muitos outros, "desceram o cerro”, como dizem os venezuelanos, para protestar contra a contestada reeleição de Nicolás Maduro.

A migração em massa de eleitores do chavismo para a oposição é um fenômeno político natural, passados 25 anos desde a chegada de Chávez ao poder e, sobretudo, após os desastrosos governos de Maduro em matéria econômica e social. O presidente responsabiliza as sanções econômicas dos Estados Unidos e União Europeia, entre outros, mas esse argumento não convence mais grande parte dos ex-eleitores chavistas. Em minhas primeiras viagens à Venezuela, nos anos de 2002, 2004, 2005 e 2009, para cobrir golpes, greves contra o governo Chávez e referendos convocados pelo líder bolivariano, o apoio dos mais pobres ao chavismo era contundente. Ninguém podia imaginar, naquele momento, um morador de bairros como Petare ou La Vega votando pela oposição.

As missões bolivarianas nas áreas de saúde, educação e habitação, entre outras, financiadas em épocas de preços elevados do petróleo, garantiram a Chávez o respaldo popular. Sua conexão emocional, quase religiosa, com seus seguidores foi outro elemento essencial para formar uma base eleitoral chavista que, até a eleição presidencial de domingo passado, foi, com duas únicas exceções (um referendo sobre um projeto de reforma constitucional em 2007 e as eleições legislativas de 2015), invencível. Mas hoje, nas favelas de Caracas os chavistas, diz a jornalista Estefani Brito, de 28 anos, que mora em La Vega, são minoria.

Estefani mora em La Vega desde que nasceu. A conheci numa caravana com a líder opositora María Corina Machado, de Caracas até Maracaibo, capital do estado Zulia. Ao falar sobre o processo eleitoral, alguns dias antes do pleito, essa jovem e talentosa jornalista ficou com os olhos cheios d’água e a voz embargada. Fiquei comovida ao ouvi-la dizer que “essa é nossa última oportunidade. Não quero deixar meu país”. A família de Estefi sempre votou pelo chavismo, incluindo seus irmãos, primos, tios e cunhadas. No último domingo, o único que votou por Maduro foi seu pai, e o clima de tensão dentro de casa a levou a fazer uma malinha e passar alguns dias na casa de uma amiga. Era isso, disse a jornalista, “ou mergulhar numa discussão que podia terminar muito mal. Meu pai me dizia que não sabia que tinha tanto opositor ao redor dele, não estava entendendo nada. Claro, só vê canais chavistas o dia inteiro”.

A repórter especial do GLOBO Janaína Figueiredo com a jornalista venezuelana Estefani Brito durante cobertura de comício opositor no estado Zulia, na Venezuela — Foto: Janaína Figueiredo
A repórter especial do GLOBO Janaína Figueiredo com a jornalista venezuelana Estefani Brito durante cobertura de comício opositor no estado Zulia, na Venezuela — Foto: Janaína Figueiredo

Na última segunda, Estefi recebeu de seus familiares vídeos de vizinhos descendo o morro de La Vega para repudiar a suposta fraude de Maduro. Nada igual tinha jamais acontecido nessa favela de Caracas. Para Estefi, não foi uma surpresa. Quando foi recolher depoimentos de eleitores no domingo, o que mais ouviu foi “vamos votar pela mudança”. Esses mesmos moradores dos bairros pobres da capital participaram de protestos durante os quais foram arrancados das paredes cartazes de Maduro. No interior da Venezuela, eleitores do candidato presidencial Edmundo González Urrutia derrubaram cinco estátuas de Chávez.

Nesta eleição e nesta nova onda de protestos na Venezuela (cobri as de 2017 e 2019), a classe média não foi a protagonista. Grande parte de seus membros já abandonaram o país, e hoje o ator principal de uma revolta social contra o chavismo é sua própria base, que nesta eleição virou as costas para o líder bolivariano, cansada da crise, do êxodo, dos apagões, da falta de água e dos preços dos alimentos em dólares que, em alguns casos, são superiores aos de supermercados nos EUA ou até na Europa.

Os moradores dos bairros pobres de Caracas desceram o morro para dizer “basta”. O trauma deixado pela repressão aos protestos de 2014, 2017 e 2019 não está impedindo que as classes populares se mantenham firmes na exigência de que o governo seja transparente com o resultado eleitoral e aceite uma derrota que, nesses bairros, é dada como certa. O esquema de controle social através do emprego público e da concessão de programas de ajuda social já não é infalível, porque a fome fala mais alto.

Em bairros como Petare e La Vega, onde nos primeiros anos de chavismo as pessoas viviam na pobreza, mas comiam razoavelmente bem e diziam sentir-se representadas por um presidente que, pela primeira vez, era “um de nós”, a indignação é grande. Hoje os comentários mais frequentes são “eles [os chavistas no poder] estão todos gordos e nós desnutridos”, ou “nós aqui na miséria e eles andando em suas caminhonetes importadas”, comenta Estefi. A sensação entre ex-eleitores chavistas é de que, acrescentou a jornalista, “roubaram o país”.

Burguesia bolivariana

Em minhas primeiras viagens à Venezuela, a desigualdade social era notória, e similar ao que se via em outros países da região como Peru, Equador ou Bolívia. Havia uma burguesia nacional, que entrou em pânico quando Chávez assumiu o poder. Muitos empresários apoiaram a campanha do líder bolivariano com a expectativa de continuar fazendo bons negócios com ele, mas o plano deu muito errado. O então presidente rompeu com quase todos, e, pouco a pouco, a burguesia tradicional foi sendo substituída por uma burguesia bolivariana, hoje absolutamente dominante. Os membros da antiga burguesia saíram do país, e muitas de suas empresas, por exemplo, meios de comunicação locais, foram compradas por empresários amigos do poder.

Em bairros de moradores de alta renda de Caracas como Prados del Este, existem três tipos de casas: as totalmente reformadas pela nova burguesia bolivariana, as que estão em ruínas porque seus donos não podem mais financiar sua manutenção, e as abandonadas por pessoas que fecharam a porta e foram embora do país.

Resta pouco da classe média que conheci nas primeiras viagens, a grande maioria faz parte da diáspora venezuelana. Uma querida amiga partiu ano passado, com dois de seus três filhos (outro já se mudara para o México), para os Estados Unidos. Seu apartamento, na região de Los Palos Grandes, está fechado, como muitos outros em Caracas. Ela participou das marchas de 2014 e 2017 e, durante o ápice do governo autoproclamado de Juan Guaidó, teve esperanças. Em 2019, fiz duas viagens a Caracas e, na segunda delas, após uma fracassada tentativa de derrubar Maduro com ajuda de um setor do mundo militar liderada por Guaidó, percebi que o poder do chavismo ainda era dominante. Naquele momento, os moradores dos bairros populares não desceram. Havia medo e uma profunda apatia. A hoje quase extinta classe média foi a principal base de sustentação de Guaidó.

Com María Corina Machado, que conheci num jantar durante a cobertura das eleições presidenciais de 2012, na casa de um grande empresário da burguesia tradicional venezuelana, algo novo emergiu. Aquela senhora da elite venezuelana com que conversei em 2012 nada tem a ver com a líder opositora que está hoje nas ruas exigindo o reconhecimento da vitória de Edmundo González Urrutia. A própria María Corina reconhece que mudou, que o povo a transformou. Difícil saber quanto tem de povo e quanto de coaching, mas a realidade, que vi com meus próprios olhos na caravana na qual conheci Estefi, é que esta mulher provoca nos setores mais humildes algo similar ao que provocava Chávez em seus inícios. A euforia de seus seguidores, que choram e gritam ao estar em contato com María Corina, dizem que a amam e lhe atiram terços, é algo bastante impressionante para quem a conheceu em outras épocas.

A líder opositora, defensora de sanções internacionais e que chegou a pedir uma intervenção estrangeira no país, ocupou o vazio deixado pelo esgotamento do chavismo nos setores populares, apelando a um discurso emocional, centrado na dor pelo êxodo de milhões de venezuelanos.

A Venezuela de hoje é um país mais pobre, mais destruído, mais vazio e no qual os setores populares que levaram Chávez ao poder impulsionam uma revolta social inédita para o chavismo. Poderia ser o começo do fim, se o chavismo se fechar e não ouvir o que estão lhe dizendo aliados na região, como Brasil e Colômbia. Em Caracas, muitos temem que seja o começo de um período ainda mais obscuro e de repressão, similar ao que se vê na Nicarágua de Daniel Ortega. Foram 12 idas à Venezuela em 22 anos. Quando o avião decolou, na última segunda-feira, saí com a sensação de que o chavismo está disposto a tudo para não perder o poder.

Mais recente Próxima Espiões, um assassino e mensagens secretas: entenda os bastidores da troca de prisioneiros entre a Rússia e o Ocidente

Inscreva-se na Newsletter: Guga Chacra, de Beirute a NY

Mais do Globo

Salários estão em dia? Impostos são recolhidos? Acordos por compras de atletas são honrados? Credores são pagos? Se as respostas forem positivas, não é errado haver ciclos de investimentos e dívidas.

Fair play financeiro já!

Segundo as normas da Anvisa, produtos dessa categorias não podem ser injetados por não haver estudos de segurança ou eficácia

PDRN, lipolíticos, exossomas: cresce uso indevido de cosméticos injetáveis no Brasil; especialistas alertam para os riscos

O valor da multa foi contestado, no entanto, será contestado judicialmente pelos autores da ação

MP ganha ação movida contra prédio que faz sombra na Praia de São Conrado

Pesquisadora da Harvard Medical School identificou que a vitamina B é a mais indicada para melhorar a memória e a concentração.

Vitaminas podem melhorar a memória? Qual suplemento pode te ajudar segundo estudo de Harvard

Com um número de deslocados à força crescendo a cada ano, mais de 7 milhões de menores sofrem com evasão escolar; entre ucranianos que fugiram da guerra, patamar chega a 600 mil

Metade das crianças refugiadas ao redor do mundo está fora da escola, aponta estudo da ONU

Apoiadores do ex-presidente planejam manifestação no berço político do dirigente do Senado

Impeachment de Alexandre de Moraes: a próxima aposta de aliados de Bolsonaro para pressionar Pacheco

Revisão de gastos está lenta e pode trazer desafios a cumprir a meta fiscal zero no ano que vem

Contas públicas: andamento de ‘pente-fino’ em benefícios neste ano indica dificuldades para 2025

Matriz de testes de avaliação do ensino é a mesma desde 1995, mas o mundo mudou e demanda habilidades mais sofisticadas