Um dia depois de serem libertados em uma troca de prisioneiros histórica entre a Rússia e o Ocidente, dissidentes russos contaram detalhes dos meses ou anos no cárcere, uma rotina de violência, “tortura moral” e “isolamento”, e revelaram como foram os momentos que antecederam o embarque rumo à Turquia.
— Parece que estou assistindo a um filme. Há uma semana eu estava no centro de detenção provisória de Lefortovo. E agora estou observando as pitorescas margens do rio Reno — afirmou, em entrevista coletiva em Bonn, na Alemanha, o ativista Vladimir Kara-Murza, condenado a 25 anos por críticas à guerra na Ucrânia. — É difícil se livrar do aspecto surreal sobre o que está acontecendo.
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Entre os 24 prisioneiros libertados na quinta-feira estão sete cidadãos russos presos por suas críticas ao governo de Vladimir Putin, por integrarem organizações consideradas “indesejáveis” ou “extremistas”, como a Fundação Anti-Corrupção, de Alexei Navalny, morto em fevereiro em uma prisão no Ártico. Alguns receberam penas longas, de algumas décadas em prisões remotas do extenso território russo, sob o risco constante de ameaças e agressões.
— Quando as pessoas ouvem falar da tortura de prisioneiros, imaginam a tortura física. Mas a tortura moral e psicológica é pior do que a tortura física. As regras da ONU determinam que o isolamento prolongado é definido como um período superior a 15 dias. Fiquei em confinamento solitário durante 10 meses — disse Kara-Murza, um dos principais nomes da oposição russa, e que sobreviveu a duas tentativas de assassinato com Novichok, uma arma química usada em um atentado contra Navalny, em 2020.
Kara-Murza afirmou que, nos últimos dois anos, só conseguiu falar com a mulher uma vez, e com os filhos duas vezes, sempre por telefone. Na entrevista coletiva, confessou que as esperanças de liberdade eram cada vez menores.
— A única coisa que eu tinha certeza era que iria morrer nas prisões de Putin. Não pensei que veria minha família novamente — afirmou.
Condenado a oito anos e meio de prisão pela acusação de desacreditar as Forças Armadas russas, e por distribuir informações “falsas” sobre a guerra na Ucrânia, Ilya Yashin fez um ataque direto a Putin antes de receber sua sentença em um tribunal de Moscou, em 2022: segundo ele, apenas “fracos querem calar todo mundo e queimar qualquer dissidência”, e que “é melhor passar 10 anos atrás das grades como um homem honesto do que queimar silenciosamente de vergonha pelo sangue que seu governo derrama”.
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Na entrevista coletiva desta sexta-feira, disse que buscou forças para continuar vivo no apoio que recebia do lado de fora do complexo penal, e revelou que recebeu “dezenas de milhares de cartas”.
— Não é exagero. Foi minha fonte de força. Recebi aquelas cartas e isso recarregou minha energia, minha saúde, minhas emoções. Me ajudou a sobreviver a cada dia — afirmou o político.
Kara-Murza concordou.
— Os mais de dois anos que passei na prisão de Putin realmente fortaleceram minha fé em nosso povo na Rússia. Todos os dias recebia toneladas de cartas de todo o país, de lugares onde nunca tinha estado, de lugares dos quais nunca tinha ouvido falar. pessoas que escreveram palavras de apoio, de solidariedade, que não tiveram medo de escrever abertamente sobre a sua oposição a esta guerra — declarou o ativista.
Sasha Skochilenko, artista e poeta de São Petersburgo, foi presa em 2022 após distribuir mensagens contra a guerra em um mercado da cidade, e condenada a sete anos de prisão com base em artigos da lei que impede a disseminação de informações falsas sobre o conflito. Ela foi declarada pela Anistia Internacional uma prisioneira de consciência, e é frequentemente citada como um exemplo da amplitude da máquina de repressão russa.
Ao canal Dozhd, em Colônia, ela afirmou não saber que seria incluída em uma troca de prisioneiros, e chegou a temer pela própria vida ao ser levada de sua cela em São Petersburgo.
— Fomos acompanhados por uma dúzia de pessoas em balaclavas. Eles não nos deixaram [prisioneiros] sentar juntos no ônibus. Comecei a perguntar para onde íamos e por quê, e eles me disseram: “se você falar, você vai em uma bolsa” — disse Skochilenko. —Parecia que estávamos sendo levados para ser fuzilados.
Durante a entrevista coletiva em Bonn, Yashin revelou sentir remorso pela inclusão de Vladimir Krasikov na lista de prisioneiros que seriam trocados. Krasikov foi condenado à prisão perpétua pelo assassinato de um militante checheno em Berlim, em 2019, um crime atribuído ao Kremlin, que sempre negou ter qualquer laço com o assassino. Nesta sexta, o porta-voz do governo, Dmitry Peskov, confirmou que Krasikov era um agente da FSB, a agência de segurança interna russa.
— É difícil perceber que você foi solto porque o assassino foi solto. É difícil — disse o político, que já foi vereador em um distrito de Moscou.
Em mais uma demonstração de sinceridade, Yashin disse que “não estava pronto para trocas, e que pediu “publicamente para não ser incluído nas listas de troca”, considerando que sua transferência da Rússia para o exterior seria ilegal. Pouco antes de embarcar rumo a Ancara, ele revelou ter dito a um agente do FSB que tentaria retornar à Rússia no futuro. A resposta foi sombria.
— Você pode voltar como Navalny. Você pode ser preso como Navalny. Você pode acabar como Navalny — disse o agente do FSB, de acordo com o relato de Yashin, se referindo ao retorno de Navalny à Rússia em janeiro de 2021, meses depois de ter sido envenenado com Novichok. Na época, o líder opositor foi preso assim que pousou em Moscou, e jamais deixou o cárcere.
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